Novo mercado de consumo ?simbiótico' e a necessidade de prot eção de dados dos consumidores

AutorClaudia Lima Marques e Guilherme Mucelin
Páginas67-93
NOVO MERCADO DE CONSUMO
‘SIMBIÓTICO’ E A NECESSIDADE DE PROTEÇÃO
DE DADOS DOS CONSUMIDORES
Claudia Lima Marques
Professora Titular da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do
Sul e Professora Permanente do PPGD da mesma instituição. Doutora em Direito pela
Universidade de Heidelberg. Mestre em Direito pela Universidade de Tübingen. Rela-
tora-geral da Comissão de Juristas do Senado Federal para a atualização do Código de
Defesa do Consumidor. Presidente do Comitê de Proteção Internacional do Consumidor
da International Law Association. ORCID: 0000-0001-9548-0390.
Guilherme Mucelin
Doutorando e mestre em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul –
UFRGS; especialista em Direitos Fundamentais e Direito do Consumidor pela UFRGS;
especialista em Droit comparé et européen des contrats et de la consommation pela
Université de Savoie Mont Blanc/UFRGS; pós-graduando em Direito do Consumidor
pela Universidade de Coimbra. Pesquisador do Grupo de Pesquisa CNPq “Mercosul, Di-
reito do Consumidor e Globalização”. Bolsista CAPES. ORCID: 0000-0003-3709-6539.
Sumário: 1. Introdução. 2. Mercado de consumo simbiótico e os dados dos consumidores unindo
o consumo ofine e online. 2.1 Simbiose: a convergência e a integração do digital e do analógico.
2.2 (Hiper)Personalização e os dados coletados dos consumidores. 3. Diálogo entre a Lei Geral de
Proteção de Dados Pessoais e o Código de Defesa do Consumidor: a interligação de tutelas frente
a nova vulnerabilidade do consumidor. 3.1 A nova vulnerabilidade do consumidor no mercado de
consumo simbiótico. 3.2 Diálogo das Fontes para uma tutela do consumidor: LGPD e CDC como
leis transversais. 4. Considerações nais. 5. Referências.
1. INTRODUÇÃO
O Direito do Consumidor depara-se com novos desaf‌ios advindos da trans-
formação digital, decorrentes de um novo paradigma tecnológico1, o qual coloca
em pauta a mistura das fronteiras entre o mercado de consumo e outras formas de
interações sociais em ambos os ambientes, online e off‌line. Ocorre, por isso, uma es-
pécie de descentralização do consumo que, ao mesmo passo em que se transpõe ao
meio digital (Digitaler Konsum)2 , faz incluir no consumo ‘analógico’ ou clássico as
características do e-commerce (hiperpersonalização, rapidez, mudança dos contratos
1. Sobre o tema: MIRAGEM, Bruno. Novo paradigma tecnológico, mercado de consumo digital e o direito do
consumidor. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, v. 125, set./out. 2019.
2. WALLASCHKOWSKI, Stephan; NIEHUIS, Elena. Digitaler Konsum. In: STENGEL, Oliver; VAN LOOY,
Alexander; WALLASCHKOWSKI, Stephan. Digitalzeitalter – Digitalgesellschaft. Wiesbaden: Springer VS,
2017. p. 109-141. p. 126.
CLAUDIA LIMA MARQUES E GUILHERME MUCELIN
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para servicizados3 etc.), e com os produtos e serviços inteligentes, aproxima os dares
dos fazeres ou muda as expectativas dos consumidores quanto ao que denominamos
produtos e serviços simbióticos. 4
Como af‌irma Teubner,5 os consumidores do século XXI são ‘sujeitos digitais’,
usando plataformas e ‘apps’, novos contratos6 e ‘engenharia’ de pagamento7, que cole-
tam nossos dados e perf‌is, que serão monitorados pelo ‘big data’8 e transformados em
marketing.9 E neste conjunto de fatores, o consumo acaba por se tornar onipresente,
10 como uma medusa,11 presente em quase todos os aspectos da vida contemporânea
online e off‌line, cross-device, na casa, no trabalho, no lazer12: um consumo ‘omnipor-
tas’ e a todo o tempo.
3. A grande novidade da economia circular, em matéria de contratos é realmente a chamada ‘servicização’
dos produtos, em que o contrato não visa mais ‘adquirir’ produtos, mas ‘usar’ produtos (da compra e venda
se passa a contratos de aluguel, à custódia, ao contrato de licenças por tempo, a permissões de uso, ao
transporte eventual, à hospedagem e ao contratos de short-term-rental, sharing transferable rights, time-
sharing etc.), contratos típicos desta nova sharing economy ou a ‘economia das plataformas’. Destaque-se
também que alguns bens, conteúdos ou produtos imateriais, em tempos digitais, passam a ser ‘acessados’
por streaming, no chamado comércio eletrônico de ‘conteúdos digitais’ (e-books, músicas ‘downloadable’,
f‌ilmes, games e aplicativos-apps etc.), e o ‘streaming’ não deixa de ser um serviço remunerado mês a mês
ou por uso eventual no tempo. Em inglês, ‘servitization’, veja MAK, Vanessa; TERRYN, Evelyne. Circular
Economy and Consumer Protection: The Consumer as a Citizen and the Limits of Empowerment Through
Consumer Law, Journal of Consumer Policy (2020) 43:227-248, p. 239.
4. Utilizaremos aqui a expressão simbiótica de MARQUES, Claudia Lima; MIRAGEM, Bruno. Serviços
simbióticos ou inteligentes e proteção do consumidor no novo mercado digital: homenagem aos 30 anos do
Código de Defesa do Consumidor. Revista do Advogado sobre os “30 anos do Código de Defesa do Consumidor”,
p. 14-29, p. 10 da versão online.
5. TEUBNER, Gunther. Digitale Rechtssubjekte, Archiv des Civilistische Praxis -AcP 218 (2018), p. 155 e s.
6. Veja estes novos contratos ‘smarts’ e de serviços. In: MARQUES, Claudia Lima. 30 anos de Código de Defesa
do Consumidor: Revisitando a teoria geral dos serviços com base no Código de Defesa do Consumidor em
tempos digitais. In: MIRAGEM, Bruno; MARQUES, Claudia Lima; MAGALHÃES, Lucia Ancona Lopez de.
Direito do Consumidor – 30 anos do CDC, Rio de Janeiro: Forense, 2021, p. 41 e seg.
7. Os italianos chamam de ‘sistemas de pagamento’ que tem um papel dominante no desenvolvimento do
comércio eletrônico, hoje móvel com os celulares, com os chamados ‘smart cards’ e os ‘paypals’, veja
CHIRICO, Antonio. E-commerce – I sistemi di pagamento via Internet e la monenda elettronica, Napoli: Ed.
Simone, 2006, p. 7 e s.
8. Veja SCHWEITZER, Heike. Digitale Platformen als private Gesetzgeber: ein Perspektivwechsel für die
europäische ‘ Plattform-Regulierung’, ZEUP 1 (2019) 1-12, p. 1-2.
9. Veja o estudo realizado na Turquia conclui pela necessidade de adaptar o consentimento a este ‘ecosystema’
de dados e marketing, que também na TV ‘adressable’: BERBER, Leyla Keser; ATABEY, Ayça. Adressable TV
and Consent Sequencing, Global Privacy Law Review, v. I, Issue I, 2020 (Kluwer), p. 38.
10. Veja a ‘ironia’ brilhante dos ensaios de BAUDRILLARD, Jean. Tela total. Trad. Juremir Machado da Silva, 5.
ed. Porto Alegre: Ed. Sulina, 2011 (1997), especialmente, p. 45 e s.
11. A f‌igura de linguagem é de Baudrillard, BAUDRILLARD, Jean. La societé de consommation. Paris: Denoël,
1970. p. 17-18.).
12. Na vida das pessoas comuns, 24 horas conectadas, sem barreiras entre a mídia, a mídia social e o mercado
de consumo, há um consumo omnipresente e o e. STJ já decidiu que: “1. A exploração comercial da
Internet sujeita as relações de consumo daí advindas à Lei 8.078/90” e que: “2. O fato de o serviço prestado
pelo provedor de serviço de Internet ser gratuito não desvirtua a relação de consumo, pois o termo “mediante
remuneração”, contido no art. 3º, § 2º, do CDC, deve ser interpretado de forma ampla, de modo a incluir o
ganho indireto do fornecedor.” (STJ, REsp 1316921/RJ, Rel. Min. Nancy Andrighi, 3ª Turma, j. 26.06.2012,
DJe 29.06.2012).

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