A regulamentação do trabalho intermitente: impactos para o trabalhador e para o mercado de trabalho

AutorMaria Cecília Alves Pinto
Páginas174-186

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1. Introdução

A presente abordagem acerca do trabalho intermitente, introduzido no direito do trabalho brasileiro pela Lei n. 13.467, de 13.7.2017, responsável pela reforma trabalhista, posteriormente alterada pela Medida Provisória (MP) n. 808, de 14.11.2017, tem como meta uma aproximação teórica acerca desse instituto, mediante análise da previsão jurídica ora instituída, buscando vislumbrar os efeitos da sua aplicação para o trabalhador e também para o mercado de trabalho.

O art. 443 da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) passou a ter a seguinte redação, após a alteração introduzida pela Lei n. 13.467/2017 (grifos acrescidos no caput, bem como no § 3º):

O contrato individual de trabalho poderá ser acordado tácita ou expressamente, verbalmente ou por escrito, por prazo determinado ou indeterminado, ou para prestação de trabalho intermitente.

§ 1º Considera-se como de prazo determinado o contrato de trabalho cuja vigência dependa de termo prefixado ou da execução de serviços especificados ou ainda da realização de certo acontecimento suscetível de previsão aproximada.

§ 2º O contrato por prazo determinado só será válido em se tratando:

  1. de serviço cuja natureza ou transitoriedade justifique a predeterminação do prazo;

  2. de atividades empresariais de caráter transitório;

  3. de contrato de experiência.

§ 3 º Considera-se como intermitente o contrato de trabalho no qual a prestação de serviços, com subordinação, não é contínua, ocorrendo com alternância de períodos de prestação de serviços e de inatividade, determinados em horas, dias ou meses, independentemente do tipo de atividade do empregado e do empregador, exceto para os aeronautas, regidos por legislação própria.

Antes, a legislação trabalhista apenas autorizava o contrato de trabalho por prazo determinado ou indeterminado, sendo este a regra. Para o contrato de trabalho por tempo determinado, foram descritas as hipóteses restritas em que é admitido, o que ocorre apenas em se tratando de serviço cuja natureza ou transitoriedade justifique a predeterminação do prazo, nas atividades empresariais transitórias ou nos contratos de experiência.

Com a reforma trabalhista, foi previsto também o contrato de trabalho intermitente, que pode ser firmado independentemente da atividade do empregado e do empregador, excluídos apenas os aeronautas que são regidos por legislação própria. Nele, é possível a alternância de períodos de prestação de serviços e de inatividade, fixados por horas, dias ou meses, desaparecendo uma das principais obrigações patronais, que é a de proporcionar ao empregado o trabalho, para o qual foi contratado. Isso ocorre porque, no contrato de trabalho intermitente, o trabalhador é convocado para o trabalho em determinado número de horas, dias ou meses, cabendo-lhe acolher ou não o chamado no prazo legal, estando supostamente livre para exercer quaisquer outras atividades do seu interesse, inclusive trabalhar para terceiros.

Importante anotar que a previsão do trabalho inter-mitente pela legislação brasileira ocorreu no bojo da denominada “reforma trabalhista”, aprovada em momento político conturbado, instaurado após o impeachment da presidente Dilma Roussef, o que vem sendo apontado como verdadeiro golpe de Estado por inúmeros estudiosos. Naquele momento, o então vice-presidente Michel Temer assumiu a presidência da República e elegeu como prioritários dois grandes e nefastos projetos de governo, que atentam contra a classe trabalha-dora: a reforma trabalhista e a reforma previdenciária.

Referido momento político, marcado por denúncias de corrupção contra inúmeros deputados, senadores, ministros de Estado e o próprio presidente da República, propiciou a aprovação dessa reforma trabalhista, sem prévio debate com a sociedade. A reforma foi divulgada pela grande mídia sob falsas premissas, dentre as quais a de que seria a solução para o desemprego, criando-se inúmeros novos postos de trabalho, além da veiculação da ideia de que não haveria supressão de quaisquer dos direitos conquistados pelos trabalhadores.

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Pura ideologia1 que mascarou a realidade por um discurso dissociado da verdadeira intenção que foi ocultada, pois a reforma, no seu conjunto, flexibilizou os direitos dos trabalhadores, destacando-se, dentre diversos outros, os seguintes aspectos: 1) permitiu a ampla e irrestrita terceirização de serviços, inclusive nas atividades-fim das empresas; 2) privilegiou a prevalência do negociado sobre o legislado; 3) suprimiu o pagamento das horas in itinere; 4) instituiu o contrato de trabalho intermitente, em que o trabalhador não tem a garantia ao trabalho e tampouco à percepção de um salário mínimo ao final do mês.

O retrocesso social imposto pela denominada reforma trabalhista revela a importância de se retomar a lição de Norberto Bobbio, segundo o qual os direitos humanos não são conquistados todos de uma vez e tampouco de uma vez por todas. Também é importante realçar a concepção que Joaquín Herrera Flores apresenta dos direitos humanos, como resultado, sempre provisório, das lutas empreendidas pelos seres humanos para o acesso aos bens necessários para viver.

A flexibilização do direito do trabalho como consequência da alteração da legislação trabalhista, com a supressão de direitos conquistados em processos de lutas sociais, revela ser premente e necessária a organização dos trabalhadores, visando ao desenvolvimento de estratégias para a construção de espaços de insurgência, a transformação da realidade e a criação de outra racionalidade econômica, em que seja conferida centralidade à vida, em que o ser humano e a natureza assumam posição de destaque. Tudo isso para a retomada dos direitos ora suprimidos e para a conquista de outros, objetivando conferir condições de vida digna aos trabalhadores e suas famílias.

O objetivo do presente trabalho é, assim, a apreensão do conteúdo do novel instituto, qual seja, o contrato de trabalho intermitente, desvendando os contextos que levaram à sua adoção, buscando identificar os prováveis e correspondentes impactos para os trabalhadores e para o mercado de trabalho.

2. A experiência do trabalho intermitente em outros países

A Lei n. 13.467/2017, por meio da qual foi concretizada a reforma trabalhista, como visto acima, alterou o art. 443/CLT, introduzindo na legislação brasileira o denominado contrato de trabalho intermitente, “no qual a prestação de serviços, com subordinação, não é contínua, ocorrendo com alternância de períodos de prestação de serviços e de inatividade, determinados em horas, dias ou meses”. Referido contrato independe do tipo de atividade do empregado e do empregador, sendo vedada a sua celebração apenas para os aeronautas, que são regidos por legislação própria.

Essa modalidade contratual encontra previsão na legislação estrangeira, podendo ser citada, dentre outros, a escala just in time no direito americano ou o denominado zero hour contract no direito inglês e também o contrato de trabalho intermitente previsto no direito português, utilizada a mesma terminologia adotada na legislação brasileira, ora em estudo.

Sobre o contrato de trabalho intermitente, Ivanderson Baldanza Dias Junior afirma que houve verdadeira importação do modelo adotado pelos Estados Unidos sob o título de escala just in time, em que o trabalho é convocado sob demanda. Invocando as constatações de Robert Reich, ex-secretário do Trabalho no governo de Bill Clinton, o autor aponta que o modelo aumenta a eficiência empresarial, mas afasta a segurança das famílias dos trabalhadores, diante da imprevisibilidade do trabalho, sujeito a escala irregular, não contando com qualquer garantia de convocação, o que implica em compartilhamento dos riscos do empreendimento, pois, havendo demanda, o trabalhador será convocado para o trabalho e, caso não haja, não será convocado. Ou seja, o empregado não pode contar com o salário para a sua manutenção, pois poderá haver semanas ou meses em que não será chamado a trabalhar. E, sem horas de trabalho, não há direito a pagamento algum2.

Flávio da Costa Higa afirma que o protótipo brasileiro “baseia-se no ‘zero-hour contract’ do direito inglês”, apontando como principal característica do instituto, previsto no art. 27-A do Employment Rights Act 1996, a ausência de “garantia de prestação de serviços e de recebimento de salário”. Segundo o autor, a “doutrina estrangeira, aliás, acusa o ‘zero-hour contract’ de ser apenas um rótulo para mascarar o crescimento da precarização” e acrescenta:

A experiência britânica demonstra que a nossa in-quietude não é em vão. O texto nacional não previne a migração de trabalhadores com contratos por

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prazo indeterminado para o trabalho intermitente, o que seria importante, pois o The Guardian, em 2013, revelou que 90% dos empregados ingleses do McDonald’s trabalhavam sob “zero-hour contract.3

Em Portugal, o Código do Trabalho de 2009 (Lei n. 7/2009) previu, nos arts. 157 a 160, a modalidade de contrato de trabalho intermitente. Para André Almeida Martins:

Esta figura contratual, conhecida, estudada e consagrada legalmente em vários países da Europa com ordenamentos jurídicos próximos do nosso, traduz-se, sobretudo, como veremos numa das submodalidades agora consagradas, o designado trabalho à chamada, “numa das mais flexíveis formas de emprego” que o Direito do Trabalho conhece.4

As graves...

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