Relação de emprego 'versus' trabalho autônomo: fim do princípio da primazia da realidade?

AutorAdriana L. S. Lamounier Rodrigues/José Caldeira Brant Neto
Páginas167-173

Page 167

1. Introdução

Vivemos num mundo de contrários, antônimos que se conjugam a todo tempo, se embaralham, se fundem, algumas vezes se dissolvem e outras permanecem caminhando lado a lado.

O Direito do Trabalho, desde suas origens, foi permeado por paradoxos, pois carrega em si “o aprendizado dos dominadores e, ao mesmo tempo, os gérmens da resistência dos dominados” (GENRO, 1979) e ainda tem a missão de se fazer incidir quando cessa a autonomia e aparece o poder empregatício.

Porém, apesar das contradições e múltiplas funções, a solidez do Direito Social do Trabalho é o seu fundamento em alguns princípios norteadores. E, de forma já progressista, afirmava o professor Evaristo de Moraes Filho (1965 p. 13) que “em nenhum direito se encontra uma sede de justiça distributiva tão intensa como no Direito do Trabalho”.

No Direito do Trabalho brasileiro, a Consolidação das Leis Trabalhistas — CLT — “percebeu (e recolheu) o que acontecia na realidade” (VIANA, 2014); o Direito recolhe informações da realidade para se reconstruir.

A CLT é também repleta de palavras escritas e não escritas, ou ainda, de vozes e silêncios (VIANA, 2014), sendo as leis as vozes ou as palavras escritas e os princípios as não escritas ou os silêncios. Silêncios esses que propiciam a força das palavras escritas, que dão alma ao corpo ‘celetista’.

Os princípios juslaborais conferem espírito à CLT, dimensionando o seu sentido e o seu alcance (FELICIANO, 2017). Aliás, o Direito reconhece o papel estruturante de seus princípios imanentes, sem o qual o “Direito objetivo seria um conjunto acrítico de normas positivas mais ou menos coerentes entre si” (FELICIANO, 2017, p. 121).

E nesse sistema principiológico do Direito do Trabalho, temos, de acordo com Américo Plá Rodriguez (2000), o Princípio da Proteção (a espinha dorsal do sistema), o Princípio da Primazia da Realidade, o Princípio da Boa-Fé, o Princípio da Irrenunciabilidade, o Princípio da Continuidade e o Princípio da Razoabilidade.

O Princípio da Primazia da Realidade é, pois, um dos princípios basilares do sistema juslaboral. Portanto, sua aplicação é imperativa no momento da hermenêutica das normas-regras da legislação trabalhista.

Como se sabe, as normas laborais são resultado da correlação de forças sociais (FERREIRA, 2002), e, assim, o Direito do Trabalho para poder fazer incidir sua norma, volta-se aos fatos, de modo a descortinar a realidade e verificar a “manifestação fenomenológica do fator trabalho” (RODRIGUEZ, 2000).

Nesse sentido, o presente trabalho objetiva analisar a relação de emprego e o art. 442-B introduzido pela reforma trabalhista1 na CLT, à luz do princípio imanente da Primazia da Realidade e da conceituação da pedra de toque do contrato de trabalho, qual seja, a subordinação.

Para isso, primeiramente, analisar-se-á os pressupostos fático-jurídicos da relação de emprego, dando ênfase ao fundamental elemento da subordinação e à sua evolução conceitual.

Após, far-se-á um panorama sobre o Princípio da Primazia da Realidade e a sua aplicação na legislação trabalhista, principalmente, em relação ao incoerente art. 442-B inserido pela Lei n. 13.467/2017 e seus parágrafos inseridos pela Medida Provisória 808/2017.

E, por fim, será examinado como a jurisprudência juslaboral brasileira tem feito para caracterizar o vínculo empregatício e aplicado o Princípio da Primazia da

Page 168

Realidade. Ainda será feita uma prospectiva no sentido da imperatividade dos princípios e da sistematicidade da CLT ao invés da interpretação exegética de uma regra incoerente como o caput do art. 442-B, incorporado à CLT desde o dia 11 de novembro de 2017.

2. Pressupostos fático-jurídicos

A Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT) em seus arts. 2º e 3º conceitua empregador e empregado, estabelecendo ser o primeiro aquele que assume os riscos da atividade econômica, admite, assalaria e dirige a prestação pessoal de serviço e o segundo toda pessoa física que prestar serviços de natureza não eventual a empregador, sob a dependência deste e mediante salário.

A partir desses dispositivos legais, é possível identificar os cinco pressupostos2 fático-jurídicos da relação de emprego, quais sejam: pessoa física, pessoalidade, não eventualidade, onerosidade e subordinação.

O trabalhador é sempre uma pessoa física que presta serviços intuito personae. Como bem detalha Luiz Otávio Renault (2011, p. 33), “marcas personalíssimas são deixadas no resultado do trabalho, por quem o executa, em proveito de quem nem sempre gosta de exibir o seu rosto”.

O vínculo consuma-se com cada trabalhador, per si, e direta é a relação de cada um com a empresa. Outra consequência, como observa Vilhena (1975, p. 171) “é que não há empregado de empregado: o empregado deste é empregado de quem seja empregador”, ou seja, é inviável a substituição de posições jurídicas.

O empregado, de forma personalíssima, ainda executa seu trabalho não eventualmente, seu serviço insere-se no núcleo matricial da produção da empresa. De acordo com Russomano (1960 p. 47), só é serviço eventual aquele que não faz parte normal do estabelecimento, o que não impede, porém, que esteja essencialmente ligado à existência da empresa. Assim, o conceito de even-tualidade parte da concepção de serviço essencial e permanente na vida da empresa (VILHENA, 1975).

Ademais, para toda prestação há que haver uma contraprestação pecuniária, pois o serviço tem um preço. É, portanto, lógico o pressuposto da onerosidade.

Todos esses quatro pressupostos são bem característicos. Porém, eles, por si sós, não seriam capazes de solucionar casos limítrofes, de delimitar a natureza jurídica numa zona cinzenta. Por isso, o quinto pressuposto, a subordinação, é considerado a pedra de toque do contrato de emprego. O pressuposto que delineia onde termina a autonomia e onde começa o Poder Empregatício.

Como bem descreve Alonso Garcia (1960, p. 51), basta imaginar uma pirâmide de cabeça para baixo para se ver todo o Direito do Trabalho em seu plano superior e em seu ápice inferior a subordinação.

Conceituar o trabalhador como subordinado é dizer que ele se encontra sob ordens que podem ser explícitas ou implícitas, rígidas ou maleáveis, constantes ou esporádicas, em ato ou potência (RENAULT, 2011). Ele faz o que é determinado por quem admite, assalaria e dirige a prestação de serviços.

A noção de trabalhador subordinado deve ser elaborada em conformidade com as finalidades concretas de tutela perseguidas pelas normas trabalhistas (PORTO, 2008). Paulo Emílio Ribeiro de Vilhena (1975, p. 220) assevera que “a subordinação é um conceito dinâmico, como dinâmicos são em geral os conceitos jurídicos se não querem perder o contato com a realidade social a que visam exprimir e equacionar”. E por isso o conceito de subordinação vinha evoluindo na doutrina e jurisprudência.

Já nas décadas 1960 e 1970, momento que marca a expansão do Direito do Trabalho, afirmava De La Cueva que a subordinação é um poder-dever-jurídico. Iniciava-se a construção do conceito objetivo de subordinação. Observava já Vilhena, ao trazer o autor alemão Jacobi, precursor da conceituação objetiva da subordinação, para o Direito do Trabalho brasileiro que:

A objetivação da relação de trabalho, em que se acentua a prestação (Jacobi) como núcleo de captação objetivada dos interesses em tráfico, preserva o trabalhador no respeito que se deve à pessoa humana, que não se sujeita, porque a ordem jurídica está estruturada no respeito mínimo à dignidade do indivíduo como pessoa, cuja vontade vinculante não elimina a vontade vinculada (VILHENA, 1975, p. 231).

De forma esclarecedora arremata Vilhena que a subordinação é a participação integrativa da atividade do trabalhador na atividade do credor de trabalho (VILHENA, 1975, p. 232).

Também Romita conceitua a subordinação como objetiva, explicando que ela se manifesta não através da intensidade das ordens empresariais, mas, sim, pela simples integração da prestação laborativa do trabalhador nos fins da empresa, aos objetivos perseguidos pelo tomador, aos fins do empreendimento. Nesse sentido, o obreiro seria subordinado caso a sua atividade se integrasse aos objetivos empresariais (PORTO, 2008).

Já Mauricio Godinho Delgado...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT