Aborto

AutorFernando de Almeida Pedroso
Ocupação do AutorMembro do Ministério Público do Estado de São Paulo. Professor de Direito Penal. Membro da Academia Taubateana de Letras
Páginas215-246

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8.1. Conceito

Vimos que o Direito Penal protege a vida extrauterina e a intrauterina. Tutela a primeira com a incriminação do homicídio, infanticídio e participação em suicídio. Ampara a última com inflição de pena às modalidades delituosas do aborto, também denominado abortamento (v. n. 1.4). Lado outro, ficou assentado que a vida endouterina se encerra no princípio do processo de parto, momento no qual se inicia a vida extrauterina (n. 1.4). Daí se conclui que o princípio do processo de parto desempenha o papel de marco delimitador do final da vida endouterina e do começo subsequente da vida extrauterina.

De tal arte, aquilata-se que o aborto, como entidade criminosa, pressupõe, como elementos estruturais indeclináveis, já que atinge a vida intrauterina, a existência de um processo de gestação em curso, interrompido pela conduta humana, com a eliminação da vida do produto da concepção.

Pode-se definir o aborto, portanto, como a interrupção dolosa (pois a culpa não é punível - v. n. 8.5) de uma gravidez, com a consequente morte do nascituro.

8.2. Objetividade jurídica e sujeito passivo

Acabamos de ver que o crime de aborto se caracteriza pela interrupção desejada do estado fisiológico da gestação com o perecimento do nascituro.

Elimina-se a vida endouterina.

Essa modalidade de vida, ainda biologicamente dependente do organismo materno, sem autonomia para subsistência própria, constitui o bem jurídico penalmente tutelado com a incriminação do aborto.

No tópico anterior ficou assinalado qual é o linde que demarca o término da vida intrauterina para, ato contínuo, com o princípio do processo de parto, começar a vida extrauterina.

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Urge agora determinar qual o instante em que se inicia a vida intrauterina, passando sobre ela a incidir a defesa penal sob o pálio da incriminação do aborto.

Definir o início exato da vida endouterina, juridicamente, não constitui proposição apascentada e tranquila. O tema presta-se a tertúlias. Para grande parte dos autores, que se louvam nos critérios médicos, biológicos ou científicos, a vida em comento tem seu princípio com a fecundação ou concepção, id est, com o encontro do óvulo e do espermatozóide, instante em que as duas células sexuais - a feminina e a masculina - passam a constituir uma célula única, o ovo ou zigoto, da qual se formará o novo ser563. Para outros, a vida em apreço somente começa com a nidação, ou seja, com o enraizamento ou fixação do zigoto (óvulo fecundado) na cavidade uterina, pois apenas com a sua implantação no endométrio o novo ser terá condições para biologicamente desenvolver-se, prosperar e vingar. Abraçam essa tese, por exemplo, Heleno Cláudio Fragoso564, Júlio Fabbrini Mirabete565, Guilherme de Souza Nucci566e Rogério Greco567. Nessa conjuntura, em face desta última tomada de posição, inexistirá proteção penal enquanto o ovo não se fixar no álveo materno. Vale dizer: no interregno compreendido entre a fecundação e a nidação a minúscula célula humana viva, a spes personae, estaria desgarrada da tutela jurídico-penal.

Pode-se conjeturar constituir a celeuma elucubração puramente cerebrina. Representaria, assim, hipótese de laboratório, pois seria questão meramente teórica perscrutar se o início da vida intrauterina se dá com a simples concepção ou unicamente com a nidação. Se essa é a ótica que aparentemente se revela, é bem de ver que não prevalece a exame mais atilado. Implicações jurídicas relevantes podem defluir da tomada de posição que a final se sufragar.

Calha ilustrar.

Anúncio e propaganda feitos em relação ao DIU (dispositivo intrauterino), utilizado por muitas mulheres como meio de ser evitada uma gravidez, podem ou não subsumir-se no dispositivo do art. 20 da lei contravencional (Dec.-lei n. 3.688/1941). A conclusão a ser extraída está na dependência do entendimento que se tomar a respeito do momento de início da vida intrauterina. Sim, porque grande parte de tais dispositivos não impede a fecundação, ou seja, o encontro do espermatozóide com o óvulo, mas obsta, isto sim, que o óvulo fecundado se aninhe no útero, o que inviabiliza a gestação. Sob esse prisma, a se propugnar pelo começo da vida endouterina no instante da concepção, o DIU constituirá meio abortivo, e não anticoncepcional, de sorte que qualquer publicidade a seu respeito a título de propaganda perfará o referido tipo contravencional. Contudo, a se considerar o momento da nidação como início efetivo da vida intrauterina, o DIU será mero anticoncepcional, podendo, destarte, ser livremente anunciado.

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Outrossim, com os recursos hodiernos da ciência e com as novas técnicas laboratoriais, tornou-se possível a fecundação in vitro, surgindo a geração dos chamados "bebês de proveta". Trata-se de fenômeno atual, ao qual deve ajustar-se o Direito Penal por meio de suas disposições. A concepção, nesses casos, se realiza mediante a manipulação científica das células masculina e feminina em recipiente adrede preparado e fora do organismo materno para, apenas ulteriormente, o óvulo fecundado ser cirurgicamente implantado na cavidade uterina para o seu subsequente desenvolvimento. Pode então suceder que alguém, deliberadamente, no interstício compreendido entre a concepção e a implantação cirúrgica da spes personae, quebre o recipiente no qual se encontra o zigoto, levando ao fracasso a empreitada. O comportamento poderá ou não configurar crime de aborto. Constituirá o delito se obtiver alento a tese segundo a qual a vida endouterina já começa na mera concepção. Sob esse aspecto, a mulher de que proveio e foi extraído o óvulo fecundado, embora ainda não o tenha em suas entranhas e organismo, deve ser considerada gestante para os efeitos legais (pois gestação ou gravidez já haveria, não obstante in vitro, por pertencer-lhe a célula feminina concebida). Deixará de aperfeiçoar-se juridicamente o crime se o início de vida intrauterina somente ocorrer após a nidação, caso em que a mulher não pode ser considerada como gestante porque ainda não foi alojado no seu útero o zigoto.

De outra parte, existem meios contraceptivos que constituem as verdadeiras pílulas anticoncepcionais pelo seu efeito anovulatório, impeditivo da ovulação ou do acesso do espermatozóide ao óvulo. Mas há pílulas que atuam após a concepção e que só obliteram o enraizamento do zigoto no útero. Com relação a essa última espécie de pílulas, serão elas anticoncepcionais ou abortivas (tal como sucede com o DIU), dependendo do instante de determinação jurídica do início da vida intrauterina.

Em nosso pensar, divergindo da antiga communis opinio doctorum, consolidada ao tempo em que fecundação in vitro não passava de mera ficção científica, inicia-se a vida intrauterina não propriamente com a concepção, mas somente com a nidação. Insta, pois, que o Direito Penal, para não conferir guarida a desconchavos, se ajuste à nova realidade que o progresso científico apresenta, estendendo-se igualmente esta noção contemporânea de princípio de vida endouterina para a determinação daquilo que seja meio contraceptivo ou abortivo para os fins do art. 20 da lei contravencional. Por conseguinte, conforme nosso entendimento, o rompimento proposital do recipiente que contém o óvulo fecundado não corporifica crime de aborto, mas fato atípico, que sequer perfaz o crime de dano (art. 163, CP) à falta de expressão econômica. Da mesma forma, anúncio do DIU ou de pílula que impeça apenas a nidação (mesmo a famigerada pílula do dia seguinte, como o produto Cytotec), não tonaliza infração contravencional.

Por constituir a vida endouterina a objetividade jurídica específica do delito em tela, crível é que sujeito passivo é o nascituro, ou seja, na expressão de Nélson Hungria, o homem na antessala da vida civil, porque é ele, como pessoa virtual ou cidadão em germe568, o titular do bem jurídico penalmente tutelado.

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Nenhum vulto denota, nesse passo, o grau de desenvolvimento do nascituro no ventre materno (ovo, embrião ou feto), pois, em qualquer fase ou estágio da sua evolução no útero, figura como titular do direito violado.

Paralelamente ao produto da concepção, também a gestante pode figurar na condição de sujeito passivo ou vítima, o que sói ocorrer, a título de exceção, na hipótese do aborto sofrido (art. 125, CP) ou qualificado (art. 127, CP) em razão da natureza pluriofensiva do delito. No mais das vezes, a gestante - juntamente com o nascituro na condição de sujeito passivo - representa unicamente o objeto material do crime, id est, o ponto de incidência da ação típica, a pessoa sobre a qual é realizada a conduta incriminada.

Sendo objeto de proteção da figura criminosa sub examine a vida endouterina, é irrefragável que somente pode existir o crime de aborto se houver uma gravidez em curso e se os meios executivos postos em prática se voltarem contra ser vivente. Se não há anterior estado gravídico e manobras abortivas são realizadas na mulher na suposição da prenhez, descortina-se um crime impossível pela inidoneidade absoluta do objeto (inexiste produto da concepção para ser eliminado). Se o feto já se encontrava morto quando da realização da operação abortiva, igualmente se verifica um crime impossível pela impropriedade do objeto (v. n. 2.2 e 2.3). Mas pode acontecer que, numa destas situações, a manobra abortiva engendrada na mulher lhe cause a morte ou uma lesão grave, hipóteses em que o crime impossível de aborto acarretará para o agente...

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