Arte, pornografia e a reconstrução do direito comparado foucaultiano

AutorUladzislau Belavusau
Ocupação do AutorPesquisador PhD no European University Institute (Florência, Itália), Mestre pelo Collège d'Europe (Bruges, Bélgica)
Páginas185-227
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aRTe, pORnOgRaFIa e a
RecOnSTRUçãO DO DIReITO
cOMpaRaDO FOUcaULTIanO
Uladzislau Belavusau1
“Art, like Nature, has her monsters, things of bestial shape and
with hideous voices.” (A Arte, como a natureza, tem seus mons-
tros, coisas com formato bestial e com vozes hediondas”
(Oscar Wilde, The Picture of Dorian Gray)
1. INTRODUÇÃO
A pornograa é uma construção jurídica popular que distingue
high art de práticas culturais alegadamente desprovidas de valor ar-
tístico. É necessário perceber que a “indústria adulta” tornou-se um
negócio de bilhões de euros, incluindo sua ligação com grandes cor-
1 Pesquisador PhD no European University Institute (Florência, Itália), Mestre
pelo Collège d’Europe (Bruges, Bélgica). Eu gostaria de agradecer ao Boalt Hall
School of Law – University of California at Berkeley (Berkeley, Estados Uni-
dos), que recentemente me recebeu como acadêmico visitante por um semestre,
e, em particular, ao Professor Martin Shapiro pelo seu encorajador feedback na
versão anterior, assim como aos colegas, José María Lanzarote Guiral e Kira
Krissinel, por seus comentários generosos. Todas as omissão são por minha con-
ta. Email: Uladzislau.Belavusau@EUI.eu.
Tradução de Virgínia Astol.
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porações, tais como sex shops, cinemas de lmes adultos, redes de
hotéis, telefonia, empresas de TV a cabo e satélite. Entretanto, desde
quando nós sabemos o que é o obsceno ou o que é o pornográco e
por que declaramos ilegais certas narrativas e visualizações quando
se referem à esfera da liberdade de expressão? Essa questão se man-
tém vaga na legislação nacional (abarcada sob uma vaga referência à
“moralidade pública”) e ainda mais dispersa no Direito Internacional
Contemporâneo. O último parece silenciar-se, de alguma maneira, so-
bre desenvolvimentos desconfortáveis e desatualizados da pornogra-
a do início do século XX. Consequentemente, as primeiras “vítimas”
dessa herança puritana antipornográca na lei não são lmes, mas
obras de arte.
Quando se lida com a justaposição de arte e pornograa, devem-se
distinguir duas questões seminais: (1) se a pornograa é uma forma de
arte e, consequentemente, desfruta da proteção das disposições da li-
berdade de expressão; (2) se algumas formas de arte se enquadram na
denição jurídica de pornograa e, dessa forma, podem ser limitadas,
senão diretamente proibidas, para certas audiências. A lista de dilemas
sociojurídicos, semelhantemente, inclui a questão da arte (também
quando se torna parte do patrimônio cultural), quando ofensiva com
relação a uma comunidade em particular, assim como a questão da
arte (pornográca) como um patrimônio cultural propriamente dita.
Este artigo é uma tentativa de traçar a gênesis e a evolução da
interpretação jurídica da arte na dicotomia da liberdade de expres-
são e da pornograa. Dessa forma, seguindo a introdução, a segunda
parte trata do legado do conceito de “pornograa” no direto ociden-
tal, inspirando-se no itinerário intelectual foucaultiano. Resumin-
do diversas perspectivas (do ponto de vista da história da arte, da
história das ideias e, nalmente, da história jurídica ), reconstruo a
maneira pela qual as derrogações da “moralidade pública” calçaram
o caminho para o direito contemporâneo, enquanto mantiveram a
arte erótica em julgamento. Minha investigação vai além das narra-
tivas nacionais legais, abarcando os discursos do direito internacio-
nal “esquecidos” do século XIX ao início do século XX. A terceira
parte destaca a construção da dicotomia arte-pornograa por juízes
na Europa e nos Estados Unidos.
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Embora ambas as tradições ocidentais calquem suas epistemolo-
gias judiciais na mesma herança jurídica e, certamente, compartilhem
muitas similaridades ao construírem uma lei sobre obscenidade, a vi-
são da pornograa, vis a vis liberdade de expressão, não guram idên-
ticas. O teste jurídico popular (e talvez o mais citado), desenvolvido
pela Suprema Corte Americana no Caso Miller, é o objeto da quar-
ta parte, na qual faço um resumo das perspectivas contemporâneas
com relação à pornograa e arte (moralista, liberal e feminista), assim
como questiono a possibilidade de separar a pornograa da arte pós-
moderna, sem cair em uma vertente escorregadia de censura. Essa
posição leva às minhas conclusões, na quinta parte, de que o ressur-
gimento dos instrumentos de direito internacional do início do sécu-
lo XX, baseados na rationale do teste de Miller, irá, essencialmente,
minar o desenvolvimento progressivo do direito internacional do pa-
trimônio cultural, da liberdade de expressão, da não discriminação e,
nalmente, desvalorizar os frutos preciosos da emancipação cultural.
§2. ARS EROTICA
Legado da Arte Erótica: Investigação Histórica
Nos anos 70, Michel Foucault empreendeu um projeto fundamen-
tal para a história das ideias, explicando a evolução da sexualidade
como um foco da civilização ocidental2. Denitivamente, ele não foi
o primeiro estudioso sobre a sexualidade, tendo sido inuenciado pe-
los importantes desenvolvimentos nos campos da história, psicanálise,
sociologia familiar, crítica literária, assim por diante. A ideia de “sexo
reprimido”, portanto, não era nova. De todo modo, a contribuição de
Foucault é ainda marcante devido à sua demonstração convincente
de que, historicamente, existem duas maneiras de construção do se-
xual. No mundo greco-romano, China, Japão e Índia, a sexualidade
era idealizada como uma “ars erotica” (arte erótica), na qual o sexo é
percebido como sendo uma experiência criativa especial, ou seja, não
2 M. Foucault, Histoire de la sexualité 1: La volonté de savoir (Éditions Galli-
mard, Paris 1976). Outros dois volumes: “L’usage des plaisirs’ and ‘Le souci
de soi”.
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