Autonomia e Subordinação na Relação de Emprego

AutorSilvia Teixeira do Vale/Rosangela Rodrigues D. de Lacerda
Ocupação do AutorJuíza do Trabalho no TRT da 5ª Região/Procuradora do Trabalho da PRT 5ª Região
Páginas213-246
1.
AUTONOMIA E SUBORDINÃO
NA RELAÇÃO DE EMPREGO
(1) RODRIGUEZ, Américo Plá. Curso de direito do trabalho. Tradução de João da Silva Passos. São Paulo: LTr, 1982, p. 29.
(2) Para Jorge Luiz Souto Maior, o direito do trabalho não surgiu concomitantemente com a legislação trabalhista burguesa
do século XIX, sendo, em verdade, uma construção teórica de maior amplitude, com o propósito de efetiva socialização do
direito, que foi se produzindo ao final do século XIX e no início do século XX, que pretendia alcançar uma mudança na própria
racionalidade jurídica. Em outras palavras, o direito do trabalho é oriundo, em verdade, do fracasso do direito social em se
tornar uma nova racionalidade jurídica, diametralmente oposta à liberal, que tem por premissas a ausência de humanismo e
de solidariedade no âmago da teoria geral do direito. Para maior aprofundamento, vide MAIOR, Jorge Luiz Souto. Curso de
direito do trabalho – teoria geral do direito do trabalho – vol. 1, parte 1. São Paulo: LTr, 2011, p. 338-339.
A pedra angular do direito do trabalho é o con-
ceito de subordinação jurídica. O direito do trabalho
tem a sua origem na regulamentação das relações de
emprego típicas do período da Revolução Industrial,
tendo erigido como seu núcleo central o trabalho su-
bordinado – contando com a antinomia necessária
e paradigmática do trabalho autônomo. Direito do
trabalho e capitalismo possuem origem no mesmo
contexto histórico e cultural – não há que se cogitar
sobre a existência de um direito do trabalho em pe-
ríodo anterior, como na Idade Média ou Idade Mo-
derna, nos quais a relação de sujeição entre senhores
e servos ou escravos estava mais próxima dos direi-
tos reais do que dos direitos obrigacionais. Embora
existissem normas esparsas e incipientes para tutela
laboral, não foi criado, até o advento da Revolução
Industrial, um ramo do direito autônomo e indepen-
dente para regulação das relações de trabalho.
Segundo Plá Rodriguez, em todos os países oci-
dentais o fenômeno é constatado, embora variem as
nomenclaturas. Na França e na Bélgica, fala-se em
direção ou vigilância; os alemães e espanhóis o deno-
minam de dependência; os italianos chamam de su-
bordinação e os mexicanos, de direção e dependên-
cia. Nos países sul-americanos de língua espanhola,
tem prevalecido a denominação de subordinação,
conquanto não tenha sido abandonada completa-
mente a expressão dependência(1).
O surgimento e consolidação do capitalismo
como regime econômico hegemônico provocou a
alteração de paradigmas sociais e trouxe, ao lado da
feroz concorrência de mercado, uma degradação das
condições de trabalho e um aumento exponencial
dos acidentes de trabalho e doenças ocupacionais. O
trabalhador, então concebido como individualidade
narrativa dotada de livre-arbítrio para contratar ou
não contratar, se assim lhe aprouvesse, submeteu-
-se às mais espúrias e indignas situações de trabalho,
com jornadas extenuantes e meio ambiente do traba-
lho aviltado, a fim de assegurar a sua sobrevivência
material em cidades apinhadas e desprovidas de in-
fraestrutura sanitária.
O presente estudo, por conseguinte, filia-se ao
entendimento de que o direito do trabalho é um
produto cultural do século XIX e que possui como
elemento nuclear o trabalho subordinado(2). Segundo
a crítica marxista, a legislação trabalhista foi criada
como instrumento de controle da classe trabalha-
dora, tendo por escopo a concessão de direitos – o
mínimo possível – para conservação do sistema capi-
talista. Não havia a preocupação com a saúde, bem-
-estar ou qualidade de vida do trabalhador; em ver-
dade, a necessidade de sobrevivência do capitalismo
originou a proliferação de normas tutelares. Como
preleciona Celso Naoto Kashiura Júnior:
Era preciso sacrificar em parte os capitais in-
dividuais para que o capital em geral pudesse se
perpetuar. Se alguma diferença foi reconhecida,
foi para não reconhecê-la toda. Se certa proteção
214
CURSO DE DIREITO CONSTITUCIONAL DO TRABALHO
ao trabalhador foi instituída, foi para deixá-lo
ainda “desprotegido” no que interessa(3).
A subordinação, por conseguinte, é o cerne das
novas relações de trabalho, sendo rechaçada a noção
de autonomia e liberdade típicas do direito civil, em
face do reconhecimento de relações jurídicas entre
pessoas desiguais, sujeitas a condições socioeconô-
micas e culturais bastante díspares. O conceito de
subordinação jurídica, entrementes, é historicamen-
te determinado, tendo sofrido variações ao longo da
evolução do próprio direito do trabalho e tornando-
-se elemento de investigação científica recente, em
face das transformações tecnológicas e precarização
das relações de trabalho.
1.1 TEORIAS CLÁSSICAS SOBRE A
SUBORDINAÇÃO
No âmbito legislativo, o art. 3º da CLT não se repor-
ta à subordinação, mas à dependência, na medida em
que conceitua o empregado como toda pessoa física que
prestar serviços de natureza não eventual a empregador,
sob a dependência deste e mediante salário(4).
Neste conceito normativo exsurgem os elemen-
tos caracterizadores do vínculo empregatício – ser-
viços prestados por pessoa física, com pessoalidade,
onerosidade, não eventualidade e dependência, na
dicção do legislador – tornando evidente a contri-
buição doutrinária e jurisprudencial para que o con-
ceito de subordinação se tornasse hegemônico. Nos
prelúdios da produção doutrinária, foram alocados
diversos adjetivos para a dependência – técnica, eco-
nômica e social – até que o conceito foi superado
e a subordinação jurídica consolidou-se como traço
diferenciador da relação de emprego.
Segundo Maurício Godinho Delgado, a distinção
não é meramente cosmética: enquanto a subordina-
ção é um conceito objetivo, que se traduz no aco-
lhimento, pelo empregado, do direcionamento do
(3) KASHIURA JÚNIOR, Celso Naoto. Crítica da igualdade jurídica: contribuição ao pensamento jurídico marxista. São
Paulo: Quartier Latin, 2009, p. 143.
(4) BRASIL. Consolidação das Leis do Trabalho. 51. ed. São Paulo: LTr, 2020, p. 103.
(5) DELGADO, Maurício Godinho. Curso de direito do trabalho. 15. ed. São Paulo: LTr, 2016, p. 311-312.
(6) ROMITA, Arion Sayão. Contrato de trabalho: formação e nota característica. In: GONÇALVES, Nair Lemos e outros
(Coords.). Curso de direito do trabalho. São Paulo: LTr, 1983, p. 240.
(7) DELGADO, Maurício Godinho. Curso de direito do trabalho. 15. ed. São Paulo: LTr, 2016, p. 312.
(8) GOMES, Orlando; GOTTSCHALK, Elson. Curso de direito do trabalho. 17. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 135.
empregador sobre a forma de prestação do trabalho,
a dependência é uma concepção eminentemente
subjetiva, pois atua sobre a pessoa do trabalhador,
criando-lhe um estado de sujeição (status subjectio-
nes), circunstância que não sói acontecer entre altos
empregados ou trabalhadores intelectuais(5). A subor-
dinação, portanto, atua sobre o modo de realização
da prestação do serviço, não sobre a pessoa do tra-
balhador. Deste entendimento discrepa Arion Sayão
Romita, que entende que não existe “rigor científico
numa suposta diferença conceitual entre dependên-
cia e subordinação”(6). É necessário ressaltar que o
contexto histórico de surgimento das teorias clássi-
cas de subordinação é precisamente o início do século
XIX, tendo ocorrido a sua hegemonia até a segunda
metade do século XX.
A dependência econômica significava que a sub-
missão do trabalhador tinha gênese na sua situação
economicamente inferior e no fato de depender do
emprego para se sustentar e à sua família. O conceito
busca explicar que o traço característico do contrato
de trabalho é a necessidade de remuneração do traba-
lhador para sua sobrevivência, ou seja, que o salário
é o seu meio de subsistência preponderante. Segundo
Maurício Godinho Delgado, a concepção funda-se na
hierarquia rígida da empresa, na qual o vértice da pi-
râmide econômica é ocupado pelo empregador seus
representantes(7). A assimetria econômica e a necessi-
dade de remuneração são os elementos diferenciado-
res do liame empregatício. Esta concepção, contudo,
é insuficiente para explicação do fenômeno, pois não
abrangeria, por exemplo, hipóteses excepcionais em
que o trabalhador possui uma situação econômica
melhor do que a de seu empregador, ou que possui
outras fontes de renda e não depende do salário para
sua sobrevivência.
Segundo Orlando Gomes e Elson Gottschalk,
“quem vive unicamente da remuneração do trabalho
que preste a outrem está em estado de dependência
econômica(8)”, o que não se vislumbra em determi-
Autonomia E Subordinação Na Relação De Emprego
215
nados casos e não afasta a condição de empregado
do prestador de serviços. Existem trabalhadores que
laboram não como forma de subsistência, mas como
forma de lazer, por amor ao ofício ou simplesmente
porque querem desfrutar das oportunidades que o
posto lhes proporciona(9).
A dependência técnica é a dependência do traba-
lhador para execução do trabalho, cabendo ao con-
tratante, que detém o conhecimento técnico para tan-
to, estabelecer as diretrizes da prestação de serviços.
Assim, o empregador monopolizaria o conhecimento
necessário ao processo de produção, o que assegura-
ria um poder específico sobre o trabalhador – por-
tanto, a assimetria do conhecimento técnico seria o
fundamento da assimetria da relação de emprego(10).
Segundo Orlando Gomes e Élson Gottschalk, enten-
de-se que
no poder de direção está compreendida a facul-
dade de o empregador determinar o modo por
que deve ser executado o trabalho, a orientação
técnica do serviço. O empregado não tem, por
outras palavras, plena liberdade para exercer a
sua atividade profissional. É um trabalhador que,
na realização do trabalho, está subordinado aos
critérios técnicos estabelecidos pela direção da
empresa(11).
Esta concepção recebeu críticas desde o seu nas-
cedouro, pois não considerava empregados os traba-
lhadores intelectuais, que detêm, a toda evidência,
maior cabedal de conhecimentos técnicos em com-
paração ao empregador. De fato, o processo orga-
nizativo contemporâneo ressalta a necessidade de
contratação de trabalhadores exatamente porque o
empregador não possui o referido conhecimento ou,
se o possuir, precisa se concentrar na administração
dos riscos do negócio e delegar outras atribuições aos
especialistas. Ademais, é humanamente impossível
ao empregador, em face da complexidade dos pro-
dutos dirigidos ao mercado, deter o conhecimento
(9) SILVA, Otávio Pinto e. Subordinação, autonomia e parassubordinação nas relações de trabalho. São Paulo: LTr, 2004,
p. 15.
(10) DELGADO, Maurício Godinho. Curso de direito do trabalho. 15. ed. São Paulo: LTr, 2016, p. 313.
(11) GOMES, Orlando; GOTTSCHALK, Elson. Curso de direito do trabalho. 17. ed. Rio de janeiro: Forense, 2006, p. 138.
(12) SÜSSEKIND, Arnaldo Lopes. Curso de direito do trabalho. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2010, p. 239.
(13) GOMES, Orlando; GOTTSCHALK, Elson. Curso de direito do trabalho. 17. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 151.
(14) SANTOS, José Aparecido dos. Fundamentos da subordinação jurídica do trabalhador: sujeição e construção da cida-
dania. 2009. Dissertação (Mestrado em Direito) – Faculdade de Direito, Universidade Católica do Paraná, Curitiba, p. 21.
necessário ao desenvolvimento de todas as etapas de
produção.
A dependência social seria o amálgama dos con-
ceitos de dependência econômica e dependência
hierárquica, ou seja, afirma-se que o obreiro está em
posição social inferior em relação ao empregador.
Este posicionamento, proposto por René Savatier e
defendido no Brasil por Oliveira Vianna, foi criticado
por Süssekind pelo mesmo fundamento da crítica à
dependência econômica – o de que nem todos os em-
pregados dependem econômica ou socialmente do
respectivo empregador. O autor ainda assevera que
a subordinação jurídica, oriunda do contrato de tra-
balho, embora acarrete dependência hierárquica, não
importa subordinação social do homem que trabalha
ao seu empregador(12).
As críticas aos conceitos de dependência econô-
mica, técnica e social como critérios distintivos da
relação de emprego, do início do século XX, afirmam
que as referidas concepções utilizam elementos me-
tajurídicos para sua caracterização(13). Assim, a de-
pendência estaria delimitada com base na condição
social do trabalhador (condicionamento socioeconô-
mico) e não com base na relação jurídica da qual ele
participa (condicionamento jurídico). Trata-se, por-
tanto, de uma crítica positivista às aludidas concep-
ções, pois se buscava a assepsia valorativa do direito,
expurgando todos os elementos axiológicos, cultu-
rais ou filosóficos dos seus institutos. A solução que
resultou dessa crítica, entretanto, é uma sutil tauto-
logia: a subordinação é jurídica porque prevista no
contrato, e o contrato é de emprego, porque nele há
subordinação jurídica. A causalidade nesse caso é cir-
cular e sua origem não é definida(14).
A despeito destas observações, as críticas ao con-
ceito de dependência tornaram-se hegemônicas e, em
seu lugar, surgiu o conceito de subordinação jurídica
como elemento caracterizador da relação de empre-
go. Em obra clássica no direito do trabalho, Evaristo
de Moraes Filho preceitua:

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