Devido Processo Legal na Relação de Emprego

AutorSilvia Teixeira do Vale/Rosangela Rodrigues D. de Lacerda
Ocupação do AutorJuíza do Trabalho no TRT da 5ª Região/Procuradora do Trabalho da PRT 5ª Região
Páginas391-424
6.
DEVIDO PROCESSO LEGAL NA RELAÇÃO DE EMPREGO
(1) Na relação de emprego, o Tribunal Superior do Trabalho admite o devido processo legal na relação privada, mas desde
que tal peculiaridade tenha sido prevista em ato empresarial interno (Súmula n. 51), não como decorrente diretamente da
Constituição Federal. O presente estudo sustenta que há a incidência direta da cláusula do devido processo legal e outros
direitos laborais inespecíficos na relação havida entre empregado e empregador.
(2) AMARAL, Júlio Ricardo de Paula. Os direitos fundamentais e a constitucionalização do direito do trabalho. Revista do
Tribunal Regional do Trabalho da 9ª Região, Curitiba, a. 35, v. 65, jul./dez. 2010.
No item 8.3.3 da Parte Geral do presente estu-
do, analisou-se como os direitos fundamentais, para
além da certeza de que figuram como ordem objetiva
de valores no direito brasileiro, valem como direitos
subjetivos, sindicáveis a partir do texto da Constitui-
ção Federal de 1988.
No capítulo que se inicia, pretende-se comprovar
que o direito fundamental ao devido processo legal,
com todas as suas nuances, possui eficácia na rela-
ção de emprego, durante o transcurso do liame até
a sua finalização. Para tanto, iniciar-se-á analisando
tal garantia como um direito laboral inespecífico, es-
tudando como o devido processo legal penetra nas
relações privadas de modo geral para, somente após,
perquirir de que forma essa cláusula ancestral invade
a relação de emprego.
6.1 DEVIDO PROCESSO LEGAL NAS
RELAÇÕES PRIVADAS EM GERAL
A doutrina e a jurisprudência vêm admitindo há
muito a aplicação do devido processo legal nas rela-
ções privadas, mesmo que no liame estabelecido en-
tre as partes não haja previsão formal alguma nesse
sentido(1). Há dois motivos que fundamentam este
entendimento: a) a referida cláusula é garantia cons-
titucional fundamental e, como tal, é de observância
obrigatória em todos os setores sociais, pois todo o
aparato jusfundamental estabelecido na Constituição
possui dimensão objetiva e efeito irradiante; b) as re-
lações privadas não podem servir de refúgio à pene-
tração dos direitos fundamentais, sobretudo quando
se consubstanciam em pactuações eivadas de grande
desequilíbrio entre as partes envolvidas, diante da
existência de poder social ou privado. No dizer de
Júlio Amaral, “tal como ocorre nas relações jurídicas
mantidas com os poderes públicos, os particulares
também não podem afrontar os direitos fundamen-
tais”, pois liberdade e a dignidade dos indivíduos
“são bens intangíveis, sendo certo que a autonomia
da vontade somente poderá atuar até aquele lugar em
que não haja ofensas ao conteúdo mínimo essencial
desses direitos e liberdades. E isso não é diferente no
âmbito de uma relação trabalhista”(2).
Entidades privadas detentoras de poder, a exem-
plo de associações, clubes, igrejas, agremiações e en-
tidades de classe, de modo geral, possuem poderes
semelhantes ao Estado, como a faculdade de fixar
penalidades pecuniárias e aplicar sanções, inclusive
com expulsão de seus integrantes.
Diante do poder privado, surge a necessária refle-
xão sobre a penetração da cláusula do devido proces-
so legal nessa seara, sendo o direito à motivação, o
contraditório e a ampla defesa corolários da aludida
cláusula, necessária à tutela maior, que é o acesso ao
Poder Judiciário, para que este possa analisar os mo-
tivos e a forma da aplicação das sanções, mediante
elaboração de um juízo de razoabilidade.
6.1.1 Entidades associativas e sociedades
Sociedades e associações, segundo o art. 44 do
Código Civil, são pessoas jurídicas de direito priva-
do, sendo ambas a reunião de pessoas com objetivos
comuns. Diferenciam-se as associações das socieda-
des, pois aquelas são formadas pela união de pessoas
organizadas para fins não econômicos, ao passo que
nas sociedades a finalidade do agrupamento huma-
no é elaborada com objetivos econômicos e lucrativos
392
CURSO DE DIREITO CONSTITUCIONAL DO TRABALHO
(art. 966). As entidades privadas, seguindo a diretriz
constitucionalmente traçada acerca da liberdade asso-
ciativa (CRFB/88, art. 5.º, XX), organizam-se a partir
da Lei e, principalmente, por meio de seus estatutos
sociais, podendo neles haver previsão de regras de or-
ganização, funcionamento e comportamento da pes-
soa jurídica para com os seus membros e vice-versa.
Dentre as regras, os estatutos podem instituir pe-
nalidades ou sanções convencionais, devidas em caso
de descumprimento de alguma disposição estatutária
ou legal, tais como advertências, multas, suspensões
de direitos ou até mesmo a exclusão dos sócios/asso-
ciados da entidade. Nesse passo, é dever dessas en-
tidades privadas a observância do devido processo
legal, constituído, dentre outras garantias, pela ne-
cessária motivação do ato punitivo, observância do
contraditório e ampla defesa, para que assim a sanção
possa eventualmente ser analisada pelo Estado-Juiz,
ainda que não haja previsão estatutária nesse senti-
do. A garantia fundamental, diante de sua dimensão
objetiva, penetra diretamente nas relações particula-
res, encontrando o princípio da autonomia privada
limitação na cláusula do due process of law, nos seus
aspectos formal e material.
Se o exercício do princípio da autonomia privada
permite a reunião de pessoas com a mesma finalida-
(3) Nesse sentido, aduz Paula Sarno Braga: “sucede que esses entes associativos não podem punir o associado ou o sócio por
transgressão de normas legais ou estatutárias, sem assegurar-lhe um processo prévio pautado na lei e na razoabilidade. Deve
ser respeitado o devido processo legal em suas facetas formal e material, seguindo-se um rito permeado por garantias mínimas
como contraditório, ampla defesa, direito a provas, juiz natural, decisões fundamentadas etc. que se encerre com uma decisão
equilibrada e proporcional”. Vide BRAGA, Paula Sarno. Direitos fundamentais como limites à autonomia privada. Salvador:
Juspodivm, 2008, p. 213.
(4) Referindo-se ao art. 57, asseverou Sílvio de Salvo Venosa: “esse dispositivo disse menos do que devia; qualquer que seja
a dimensão da sociedade ou a gravidade da conduta do associado, deve ser-lhe concedido amplo direito de defesa. Nenhuma
decisão de exclusão de associado, ainda que o estatuto permita e ainda que decidida em assembleia geral convocada para tal
fim, pode prescindir de procedimento que permita ao indigitado sócio produzir sua defesa e suas provas. O princípio, que po-
deria estar enfatizado nesse artigo do Código, decorre de princípios individuais e garantias constitucionais em prol do amplo
direito de defesa (art. 5.º, LV da Constituição). Processo sumário ou defeituoso para exclusão de sócio não resistirá certamente
ao exame pelo Poder Judiciário. Isso é verdadeiro não somente para a pena de exclusão do quadro social, que é a mais grave;
mas também para as demais penalidades que podem ser impostas, como advertência, repreensão, multa ou suspensão”. Vide
VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil – parte geral. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2003, p. 288.
(5) BRASIL. Tribunal de Alçada do Estado de Minas Gerais. Apelação Cível n. 2.0000.00.480020-4/000(1)). Relator Desembar-
gador Elpídio Donizetti; Órgão julgador: Quinta Câmara Cível; Data de julgamento: 16.03.2005; Data de publicação: 15.04.2005.
“EMENTA. ASSOCIAÇÃO. EXCLUSÃO DE ASSOCIADO. PROCEDIMENTO. NULIDADE. DANOS MORAIS. OCORRÊNCIA
PRESUMIDA. DIREITO PERSONALÍSSIMO. RESPONSABILIDADE CIVIL – OBRIGAÇÃO DE INDENIZAR. É nulo o procedi-
mento de exclusão de associado dos quadros de associação, quando não se observa o devido processo legal nem as garantias dele
decorrentes, tais como o contraditório e a ampla defesa, além de serem infringidas outras normas legais e estatutárias. Os danos
morais são presumidos no caso de violação à honra, pois se trata de direito personalíssimo, razão pela qual a negligência na ins-
tauração e no desenvolvimento de procedimento de exclusão irregular enseja o direito à indenização de cunho compensatório”.
(6) BRASIL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Apelação Cível n. 70002714095. Relator Desembargador Luiz
Ary Vessini de Lima; Órgão julgador: Décima Primeira Câmara Cível; Data de julgamento: 31.10.2002. “EMENTA.
AÇÃO ORDINÁRIA DE REINTEGRAÇÃO EM SOCIEDADE RECREATIVA. DIREITO DE DEFESA NÃO ASSEGURADO.
de, constituídas em torno de sociedade ou associa-
ção, estas entidades não podem agir de forma ilimi-
tada e absoluta. Ao revés, devem guardar obediência
a todos os direitos fundamentais, dentre os quais
se destaca o processo devido e suas consequências,
como o dever de informação de atos, motivação de
decisões, contraditório e ampla defesa(3).
É interessante perceber que a redação originária
do art. 57 do Código Civil de 2002 previa a possibi-
lidade de exclusão do associado, somente admissível
em havendo justa causa, devidamente prevista no
estatuto da entidade e, se esse fosse omisso, o mem-
bro da associação poderia ser, ainda assim, punido,
desde que fossem reconhecidos motivos graves, em
deliberação associativa fundamentada, pela maioria
absoluta dos presentes à assembleia geral, cabendo
recurso para essa mesma assembleia, em caso de ex-
clusão do associado.
Extrai-se do dispositivo original que não havia
qualquer previsão acerca do devido processo legal, am-
pla defesa ou contraditório, embora houvesse disposi-
ção legal acerca da necessidade de motivação no ato de
expulsão do associado. Mesmo assim, tanto a doutrina(4)
quanto a jurisprudência(5)(6) já entendiam que a cláu-
sula do devido processo legal deveria ser observada
para a aplicação da pena capital na entidade privada.
Devido Processo Legal na Relação de Emprego
393
Embora as decisões advindas do Poder Judiciário
obrigassem a aplicação do devido processo legal para
a exclusão dos associados, não havia um enfrenta-
mento direto acerca da eficácia dos direitos funda-
mentais nas relações privadas, tendo o Supremo
Tribunal Federal, a partir do julgamento do Recurso
Extraordinário n. 201.819, em 2005, apontado o ca-
minho a ser percorrido. Na referida decisão, a Corte
Suprema, ponderando a colisão firmada entre o prin-
cípio da autonomia privada versus o princípio do
devido processo legal, decidiu que as relações priva-
das não são impermeáveis aos direitos fundamentais,
devendo, ao revés, serem estes observados nas rela-
ções travadas entre particulares, sobretudo quando o
Nulidade do ato. Independentemente da legitimidade ou não dos motivos que ensejaram a exclusão dos autores do quadro
social, percebe-se, com clareza, que estes não tiveram assegurado o direito à ampla defesa, com previsão tanto na Constituição
Federal, como no estatuto da entidade demandada. Por outro lado, ainda que pudesse superar o obstáculo formal, a versão apre-
sentada pela ré para a punição aplicada não é consentânea com a realidade, pois inexistiu cedência exclusiva da área comunitária,
em seu favor, por parte da prefeitura e de particular, de modo que não poderia impedir que as pessoas se organizassem fora de
suas regras, para a prática de futebol”.
(7) BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 201.819/RJ. Relatora Ministra Ellen Gracie; Redator do
acórdão: Ministro Gilmar Mendes; Órgão julgador: Segunda Turma; Data de julgamento: 11.10.2005; Data de publicação:
27.10.2006. “EMENTA: SOCIEDADE CIVIL SEM FINS LUCRATIVOS. UNIÃO BRASILEIRA DE COMPOSITORES. EX-
CLUSÃO DE SÓCIO SEM GARANTIA DA AMPLA DEFESA E DO CONTRADITÓRIO. EFICÁCIA DOS DIREITOS FUN-
DAMENTAIS NAS RELAÇÕES PRIVADAS. RECURSO DESPROVIDO. I. EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS
RELAÇÕES PRIVADAS. As violações a direitos fundamentais não ocorrem somente no âmbito das relações entre o cidadão e
o Estado, mas igualmente nas relações travadas entre pessoas físicas e jurídicas de direito privado. Assim, os direitos funda-
mentais assegurados pela Constituição vinculam diretamente não apenas os poderes públicos, estando direcionados também
à proteção dos particulares em face dos poderes privados. II. OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS COMO LIMITES À AU-
TONOMIA PRIVADA DAS ASSOCIAÇÕES. A ordem jurídico-constitucional brasileira não conferiu a qualquer associação
civil a possibilidade de agir à revelia dos princípios inscritos nas leis e, em especial, dos postulados que têm por fundamento
direto o próprio texto da Constituição da República, notadamente em tema de proteção às liberdades e garantias fundamen-
tais. O espaço de autonomia privada garantido pela Constituição às associações não está imune à incidência dos princípios
constitucionais que asseguram o respeito aos direitos fundamentais de seus associados. A autonomia privada, que encontra
claras limitações de ordem jurídica, não pode ser exercida em detrimento ou com desrespeito aos direitos e garantias de ter-
ceiros, especialmente aqueles positivados em sede constitucional, pois a autonomia da vontade não confere aos particulares,
no domínio de sua incidência e atuação, o poder de transgredir ou de ignorar as restrições postas e definidas pela própria
Constituição, cuja eficácia e força normativa também se impõem, aos particulares, no âmbito de suas relações privadas, em
tema de liberdades fundamentais. III. SOCIEDADE CIVIL SEM FINS LUCRATIVOS. ENTIDADE QUE INTEGRA ESPAÇO
PÚBLICO, AINDA QUE NÃO ESTATAL. ATIVIDADE DE CARÁTER PÚBLICO. EXCLUSÃO DE SÓCIO SEM GARANTIA
DO DEVIDO PROCESSO LEGAL. APLICAÇÃO DIRETA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS À AMPLA DEFESA E AO CON-
TRADITÓRIO. As associações privadas que exercem função predominante em determinado âmbito econômico e/ou social,
mantendo seus associados em relações de dependência econômica e/ou social, integram o que se pode denominar de espaço
público, ainda que não estatal. A União Brasileira de Compositores – UBC, sociedade civil sem fins lucrativos, integra a estru-
tura do ECAD e, portanto, assume posição privilegiada para determinar a extensão do gozo e da fruição dos direitos autorais
de seus associados. A exclusão de sócio do quadro social da UBC, sem qualquer garantia de ampla defesa, do contraditório,
ou do devido processo constitucional, onera consideravelmente o recorrido, o qual fica impossibilitado de perceber os direi-
tos autorais relativos à execução de suas obras. A vedação das garantias constitucionais do devido processo legal acaba por
restringir a própria liberdade de exercício profissional do sócio. O caráter público da atividade exercida pela sociedade e a
dependência do vínculo associativo para o exercício profissional de seus sócios legitimam, no caso concreto, a aplicação direta
dos direitos fundamentais concernentes ao devido processo legal, ao contraditório e à ampla defesa (art. 5.º, LIV e LV, CF/88).
IV. Recurso Extraordinário desprovido”.
(8) Percebe-se aqui um flerte com a teoria da state action, já abordada no item 10.5.1 da Parte Geral do presente estudo.
ato for de aplicação de penalidade, na qual se obser-
vará a motivação da decisão, assim como as garantias
do contraditório e da ampla defesa(7).
Colhe-se ainda da aludida decisão que o caráter
público, mas não estatal(8), da atividade desenvolvi-
da pela União Brasileira de Compositores e a depen-
dência do vínculo associativo para o livre exercício
profissional de seus sócios justificam a aplicação
direta dos direitos fundamentais, máxime o devido
processo legal, o contraditório e a ampla defesa, de-
monstrando a Suprema Corte que, quanto maior o
poder privado, maior deve ser a aplicação das normas
jusfundamentais na relação particular.

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