Direito à Liberdade e Poder Diretivo do Empregador

AutorSilvia Teixeira do Vale/Rosangela Rodrigues D. de Lacerda
Ocupação do AutorJuíza do Trabalho no TRT da 5ª Região/Procuradora do Trabalho da PRT 5ª Região
Páginas274-335
4.
DIREITO À LIBERDADE E PODER
DIRETIVO DO EMPREGADOR
(1) Segundo Sartre, só “pelo fato de que tenho consciência dos motivos que solicitam minha ação, esses motivos já são objetos trans-
cendentes para minha consciência, estão fora; em vão buscaria agarrar-me a eles, escapo disso por minha existência mesma. Estou
condenado a existir para sempre além de minha essência, além dos móveis e dos motivos de meu ato: estou condenado a ser livre.
Isso significa que não se poderia encontrar para a minha liberdade outros limites senão ela mesma, ou, se prefere, não somos livres
de cessar de ser livres. [...] O sentido profundo do determinismo é o de estabelecer em nós uma continuidade sem falha da existência
em si”. Vide SARTRE, Jean Paul. O ser e o nada. Paris: Gallimard, 1943, p. 515-516.
(2) SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 24. ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 233.
(3) SILVA, Oscar Joseph de Plácido e. Vocabulário jurídico. 17. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000, p. 490.
A liberdade tem sido tema apreciado e debatido
pela filosofia desde a Antiguidade pós-Socrática; ao
longo da história, porém, o seu sentido e alcance tem
sido ampliado, o que torna necessária a distinção en-
tre os seus diversos significados, a fim de promover o
recorte metodológico do presente estudo.
Existem, basicamente e de modo simplificado,
três grandes acepções para a palavra liberdade, que
pertencem às suas respectivas dicotomias. Em um
primeiro sentido, e o que efetivamente interessa ao
presente estudo, a liberdade diz respeito à forma de
vida do indivíduo no Estado e na sociedade – neste
aspecto, há o paradoxo entre a liberdade versus au-
toridade, ou seja, em que medida o indivíduo deve
se submeter a um poder hierarquicamente superior,
também humano, que lhe determina a conduta. Em
um segundo sentido, que foi objeto de extensa di-
gressão entre os filósofos existencialistas, a liberdade
é pressuposto de toda ação eticamente responsável
e, por esta razão, devem ser consideradas todas as
limitações ambientais e sociais que restringem esta
liberdade – nesta segunda concepção, contrapõe-se a
liberdade individual e o ambiente/ sociedade. Neste
sentido, o homem está condenado a ser livre(1), pois é
responsável por tudo que faz. É também neste segun-
do sentido que residem as discussões entre liberdade
de vontade e necessidade. Em um terceiro aspecto,
a liberdade é tomada como sinônimo de livre-arbí-
trio e se contrapõe ao destino (divino ou biológico)
e questiona-se sobre a existência de uma verdadeira
liberdade humana em face dos ditames genéticos ou
de um ser superior que estabelece quem terá habili-
dades, talentos e aptidões e quem não os terá.
O conteúdo de liberdade que interessa sobrema-
neira aos operadores jurídicos trabalhistas é o que
contrapõe liberdade e autoridade, ou seja, o que ques-
tiona os limites da interferência do empregador na li-
berdade individual. Neste aspecto, por conseguinte, a
liberdade será analisada no presente estudo.
4.1 CONCEITO E HISTÓRICO
A conceituação de liberdade como prerrogativa
individual é histórica e culturalmente variada. Se-
gundo José Afonso da Silva, “liberdade consiste na
possibilidade de coordenação consciente dos meios
necessários à realização da felicidade pessoal”(2).
Conforme Plácido e Silva, “liberdade é a faculdade
ou o poder de agir segundo a própria determinação
da pessoa”(3). Na lição de J. J. Gomes Canotilho, o
direito de liberdade é o direito à liberdade física, à
liberdade de movimentos, ou seja, o direito de não
ser detido ou aprisionado, ou de qualquer modo fisi-
camente condicionado a espaço, ou impedido de se
movimentar. Já as liberdades (de expressão, de cons-
ciência, de religião, de associação etc.) são posições
fundamentais subjetivas de natureza defensiva. As-
sim, as liberdades concernem a prerrogativas que
implicam alternativa de comportamentos, ou seja,
à possibilidade de escolha de um comportamento.
Direito à Liberdade e Poder Diretivo do Empregador
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Assim, o direito à vida é um direito (de natureza de-
fensiva perante o Estado), mas não é uma liberdade
(pois o titular não pode escolher entre viver ou mor-
rer). A componente negativa das liberdades constitui
também uma dimensão fundamental (ex: ter ou não
ter religião, fazer ou não fazer parte de uma associa-
ção, escolher uma outra profissão)(4).
Sob o aspecto jurídico, a liberdade é um direito
subjetivo e um princípio. Na Constituição Federal de
1988, a liberdade está consagrada no seu preâmbulo,
além dos artigos 1º, inciso IV (livre-iniciativa como
fundamento do Estado democrático de direito);
art. 3º, inciso I (objetivo fundamental de construir
uma sociedade livre, justa e solidária); art. 5º, caput
(direito de liberdade em sentido amplo); art. 5º, inci-
so II (direito de autodeterminação); art. 5º, inciso IV
(liberdade de pensamento); art. 5º, inciso VI (liber-
dade de consciência e de crença), art. 5º, inciso IX (li-
berdade de expressão); art. 5º, inciso XIII (liberdade
de exercício de trabalho, ofício ou profissão); art. 5º,
incisos XIV (liberdade de informação); art. 5º, incisos
XV (liberdade de locomoção e de circulação); art. 5º,
inciso XVI (liberdade de reunião); art. 5º, inciso XVII
(liberdade de associação); art. 8º, caput (liberdade de
associação sindical), dentre outros.
Historicamente, é possível afirmar que, na Anti-
guidade clássica, a ideia de liberdade contrapunha-
-se à escravidão e não estava relacionada à ideia de
participação política ou de autodeterminação, como
na contemporaneidade(5). Para Sócrates, liberdade
significava autodomínio, ou seja, domínio da racio-
nalidade sobre a animalidade(6). Em outras palavras,
o homem alcança a sua liberdade ao se libertar de
suas paixões e forças exteriores que o acorrentam a
(4) CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2003,
p. 1259-1260.
(5) GAZOLLA, Rachel. Reflexões ético-políticas sobre as raízes da noção de liberdade na filosofia grega antiga. Boletim do
CPA, Campinas, a. 1, n. 2, p. 25-34, jul./ dez. 1996.
(6) REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da filosofia – vol. 1. Tradução de Ivo Storniolo. 3. ed. São Paulo: Paulus,
2007, p. 96.
(7) REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da filosofia – vol. 1. Tradução de Ivo Storniolo. 3. ed. São Paulo: Paulus,
2007, p. 92.
(8) VAZ, Henrique Cláudio de Lima. Escritos de filosofia IV: introdução à ética filosófica I. 6. ed. São Paulo: Loyola, 2012,
p. 107-108.
(9) JAEGER, Werner. Paideia: los ideales de la cultura griega. Cidade do México: Fondo de Cultura Economica, 2002,
p. 1018-1019.
(10) VERARDO, Maria Terezinha Vieira. Liberdade. In: FLEURY-TEIXEIRA, Elizabeth; MENEGHEL, Stela Nazareth (Orgs.)
Dicionário feminino da infâmia – acolhimento e diagnóstico de mulheres em situação de violência. Rio de Janeiro: Fiocruz,
2015, p. 206.
seus instintos(7). Para Platão, o homem vive uma li-
berdade que se aproxima de maneira tênue da ideia
de liberdade do mundo das formas ideais. Em outras
palavras, o homem somente atinge a verdadeira liber-
dade quando alcança a ideia do bem absoluto, não a
usufruindo na realidade concreta. O próprio mito da
caverna pode ser interpretado como uma parábola do
caminho da liberdade, pois as pessoas que vivem na
caverna experimentam apenas uma ilusão do livre-ar-
bítrio e discutem a respeito das sombras que podem
enxergar. Quando o prisioneiro liberta-se e consegue
ver o sol (o Bem absoluto), enxerga a verdadeira rea-
lidade. Somente quem é capaz de enxergar os objetos
reais é livre(8). Conquanto defendesse que os sábios
deveriam comandar e direcionar, enquanto os igno-
rantes deveriam seguir e obedecer, Platão sustentou
que as leis não deveriam ser impostas pela força, mas
deveriam contar com a disposição favorável dos súdi-
tos, o que significou um certo avanço no pensamento
antigo(9). Segundo Aristóteles, a liberdade se contra-
põe à necessidade (tudo que é condicionado externa-
mente) e à contingência (o que acontece sem escolha
deliberada). O termo liberdade engloba ação, pois a
“liberdade é concebida como o poder pleno e incon-
dicionado da vontade para determinar a si mesma ou
para ser autodeterminada”(10). Assim, o homem pode
optar entre múltiplas possibilidades, sempre guiado
pela razão. A liberdade é concebida como ausência
de constrangimentos externos ou internos, como
capacidade de agir livremente, visando alcançar o
equilíbrio da conduta pessoal. Para Aristóteles, a
causa do ato voluntário está no próprio homem, que
possui em si mesmo a potência para certos atos, ou
seja, tem a possibilidade de realizá-los ou não. O ser
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CURSO DE DIREITO CONSTITUCIONAL DO TRABALHO
humano possui responsabilidade por seus atos volun-
tários, que devem ser praticados com conhecimento
pleno das circunstâncias que o envolvem(11). Jean
Paul Sartre conduzirá esta concepção aristotélica ao
extremo: para o autor francês, a liberdade é a esco-
lha incondicional que o próprio homem faz de seu
ser e de seu mundo. Ao considerar o homem como
animal político, Aristóteles exclui todos aqueles que
não gozam dos direitos políticos e não participam da
administração da polis grega. Assim, estão excluídos
do conceito de cidadão os colonos, os camponeses e
também os homens livres que não possuem tempo
para participação política. Quanto aos escravos, são
meros instrumentos para produção de objetos e bens
de uso, sendo-lhes retirada a própria humanidade(12).
Na Idade Média, sob a égide do cristianismo, a
liberdade esteve imbricada à providência divina, pois
Deus arquiteta a ordem dos acontecimentos, como
Bem supremo. O homem possui livre-arbítrio, guia-
do pela razão, porém Deus é a causa primeva de todas
as coisas. Assinala Tomás de Aquino:
O homem tem livre-arbítrio; do contrário
seriam inúteis os conselhos, as exortações, os
preceitos, as proibições e as penas. E isto se evi-
dencia considerando que certos seres agem sem
discernimento, como a pedra que cai. Outros,
porém, agem com discernimento, mas não livre,
como os brutos. Assim a ovelha, vendo o lobo,
discerne que deve fugir, por discernimento na-
tural, mas não livre porque esse não provém de
uma reflexão, mas de um instinto natural. O ho-
mem, porém, age com discernimento, pois pela
virtude cognoscitiva discerne que deve evitar ou
buscar alguma coisa. Mas esse discernimento não
provém de um instinto natural, mas de uma re-
flexão racional. Pois a razão, relativamente às coi-
sas contingentes, pode decidir entre dois termos
opostos(13).
O homem possui livre-arbítrio pelo fato de ser
racional – esta razão, contudo, é uma dádiva divina.
Observa-se que, durante a Idade Média, pouco se dis-
cutiu acerca dos limites do Estado sobre a liberdade
(11) SALGADO, Joaquim Carlos. A ideia de justiça em Kant. Belo Horizonte: UFMG, 1986, p. 39-49.
(12) REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da filosofia – vol. 1. Tradução de Ivo Storniolo. 3. ed. São Paulo: Paulus,
2007, p. 218-222.
(13) AQUINO, Tomás de. Suma teológica. Tradução de Alexandre Correia. São Paulo: Siqueira, 1944, p. 316-317.
(14) DESCARTES, René. Meditações. Série Os Pensadores. 3. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983, p. 118.
individual, pois o poder governamental era disperso
entre os senhores feudais – o Estado absolutista so-
mente iniciará a sua formação após o fortalecimento
da monarquia, na Baixa Idade Média. Somente com
a ascensão econômica da burguesia e do mercantilis-
mo tornou-se possível a centralização do poder e a
consequente formação do Estado, tal qual existe na
contemporaneidade.
Na Idade Moderna, a liberdade adquire uma co-
notação antropocêntrica e inicia-se a discussão acer-
ca dos limites da autoridade estatal sobre a autono-
mia da vontade. Para Descartes, a liberdade
consiste somente em que podemos fazer uma coi-
sa ou deixar de fazer (isto é, afirmar ou negar,
perseguir ou fugir) ou, antes, somente em que,
para afirmar ou negar, perseguir ou fugir às coi-
sas que o entendimento nos propõe, agimos de
tal maneira que não sentimos absolutamente que
alguma força exterior nos obrigue a tanto(14).
Assim, para autor racionalista, a verdade não pode
ser alcançada pelos sentidos, mas pela razão pura e
pelas abstrações da consciência, onde residem as
ideias inatas. Assim, a liberdade é um impulso irresis-
tível para realização de uma conduta que o intelecto
reconhece como legítima com tanta clareza e distin-
ção que nenhuma outra alternativa seria admissível.
A liberdade é não ser coagido por forças exteriores,
mas pela razão unicamente. Somente com Thomas
Hobbes a questão da autoridade do Estado adquire
relevância como pauta de discussão filosófica, defen-
dendo o autor empirista que os indivíduos, a partir
da própria necessidade, instituíram o Estado e assim
se tornaram súditos de um soberano. No estado de
natureza, o homem usufrui de uma liberdade abso-
luta, porém está sujeito à violência e à insegurança.
Não há regras estabelecidas e, por conseguinte, todos
os instrumentos para obtenção dos bens, inclusive a
força e a violência, podem ser utilizados. Os homens,
que são maus por natureza (o homem é o lobo do
próprio homem), disputam e competem entre si para
obtenção e manutenção dos bens que conseguem
obter à custa da subjugação de outros homens. Pelo

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