Capítulo 1 - Da bioética ao biodireito
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Capítulo 1
DA BIOÉTICA AO BIODIREITO
Como nos ensinam as mais laicas entre as ciências humanas, é o outro, é seu olhar, que nos dene e
nos forma.1
1. INTRODUÇÃO
Famosa é a frase “o homem é um animal político” (politikón zôon), de Aristóteles.2
Essa afirmativa indicava que o homem é um ser social, um animal da polis3 – por isso
“político” – e que só encontraria as condições necessárias a seu desenvolvimento na
polis. Assim, a comunidade política seria requisito para a felicidade e a política desdo-
bramento da própria Ética.
Interessa-nos compreender que a socialização do homem se dá por intermédio de
discursos sociais, e entre as várias espécies de discurso, destacamos o discurso médico
e o discurso jurídico. Jan Broekman alertava que são eles “os protagonistas principais
de nossa vida moderna”.4 Tal fato afigura-se de absoluta importância para a Bioética. O
pensamento ético também procura influenciar o processo de socialização, destacando
métodos e consequências desejáveis para se atingir o bem.
Nesse compasso, assevera-se que não há sujeito que não seja socializado. Via de
consequência, não há sujeito que não seja juridicizado e medicalizado, porquanto é di-
fícil imaginar no mundo alguma pessoa que nunca precisou de um médico ou nunca se
deparou com dúvidas jurídicas. Quanto ao aspecto médico, deixemos claro que, para
nós, a fisiologia humana está integrada ao processo de socialização, ainda que pensemos
sua constituição também como um acontecimento espiritual.
A Bioética surge como corolário do conhecimento biológico, buscando o conheci-
mento a partir do sistema de valores. Embora se refira, frequentemente, aos problemas
éticos derivados das descobertas e das aplicações das ciências biológicas, que tiveram
grande desenvolvimento na segunda metade do século XX, mister ressaltar que referida
1. ECO, Umberto; MARTINI, Carlo Maria. Em que crêem os que não crêem? 7. ed. Tradução de Eliana Aguiar. Rio de
Janeiro/São Paulo: Record, 2002.
2. ARISTÓTELES. Política. 3. ed. Tradução de Mario da Gama Kury. Brasília: UnB, 1997. 1253a. [Título I, Cap. 2]
3. A polis ou cidade-estado constituiu-se como um bem sucedido modelo de organização político-administrativa
grego. Desenvolveu-se, principalmente, durante o período clássico da civilização grega (500-338 a.C.). Eram
entidades autônomas, com semelhanças em relação ao Estado moderno.
4. Tradução livre de “[...] los protagonistas principales de nuestra vida moderna”. BROEKMAN, Jan M. Bioética con
rasgos jurídicos. Traducción de Hans Lindahl. Madrid: Dilex, 1998, p. 14.
BIOÉTICA E BIODIREITO • Maria de FátiMa Freire de Sá e Bruno torquato de oliveira naveS
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ciência tem, entre suas preocupações principais, a questão da autonomia do paciente
e a questão ambiental.
Podemos exemplificar por meio de algumas indagações: que poderia dizer a Ética
médica sobre o bem-estar se não tiver como ponto de referência a autonomia do pa-
ciente? Como determinar os limites da admissibilidade da eutanásia legalizada, sem a
autodeterminação do interessado? Mas a autonomia não é condição para a existência
apenas da Medicina e da Ética (Bioética), mas condição também para a vida do Direito
(Biodireito) em uma perspectiva democrática.
Podemos concluir que os discursos médico, ético e jurídico possuem estreito
entrelaçamento.
É importante para a bioética constatar que os corpos submetidos a uma medicalização já se encontram
juridicizados e vice-versa. A medicalização e juridicização são processos fundamentais que outorgam
signicado à interpretação do corpo como entidade cultural. Logo, mantêm a ética sob seu poder, tal
e como o demonstram abundantemente o direito e a medicina.5
Tais discursos põem na vida concreta os pontos de vista e significados de um corpo
fisiológico. Assim, fazem parte de situações como o nascer, o morrer ou uma interven-
ção médica.6 O Direito, a Ética e a Medicina expressam valores fundamentais de nossa
cultura. A maneira de cada um lidar com os problemas se faz por meio de uma visão
institucionalizada da realidade.
Broekman expressa bem a íntima relação entre os contextos médico e jurídico ao
expor que o paciente só se torna paciente quando assume a sua posição de sujeito de
direito, ou seja, que tem voz e autonomia de decisão.7
Mas quais seriam as diferenças entre a Bioética e o Biodireito?
Percebemos que, apesar da consagração dos termos “Bioética” e “Biodireito”, ainda
há certa névoa pairando sobre o campo de atuação dos mesmos.
O Biodireito é disciplina incipiente no universo jurídico e ainda não ocupou seu
devido lugar nem nos currículos das faculdades de Direito, nem na própria dogmática.
Seu estudo é normalmente setorial, não havendo quem procedesse à formulação de
uma teoria geral, regente dos conceitos, princípios e fundamentos desse ramo jurídico.
5. Tradução livre de: “Es importante para la bioética constatar que los cuerpos sometidos a una medicalización ya
se encuentran juridizados y viceversa. La medicalización y juridización son procesos fundamentales que otorgan
significado a la interpretación del cuerpo como entidad cultural. Así pues, mantienen la ética bajo su poder, tal y
como lo demuestran abundantemente el derecho y la medicina.” BROEKMAN, Jan M. Bioética con rasgos jurídicos.
Traducción de Hans Lindhl. Madrid: Dilex, 1998, p. 15.
6. Percebam que o nascimento, a morte ou a intervenção médica não são apenas fatos médicos que podem suscitar
problemas éticos. São fatos jurídicos, no conceito técnico da Teoria Geral do Direito, isto é, são acontecimentos
naturais ou humanos que trazem consequências jurídicas, pois criam, modificam ou extinguem situações e/ou
relações jurídicas.
7. “No contexto da juridificação poder-se-ia dizer que os pacientes convertem-se em pacientes ao tomar posse de
seus direitos, mais do que quando se tornam enfermos e examina-se seu quadro médico.” Tradução livre de: “En
el contexto de la juridificación se podría decir que los pacientes se convierten en pacientes al tomar posesión de
sus derechos más que en cuanto a enfermos y el examen de contrastación de sus cuadros médicos.” BROEKMAN,
Jan M. Bioética con rasgos jurídicos. Traducción de Hans Lindhl. Madrid: Dilex, 1998, p. 30.
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