Capítulo 13 - Doação de órgãos e tecidos

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Capítulo 13
DOAÇÃO DE ÓRGÃOS E TECIDOS
Diz a célebre lenda dos Santos Cosme e Damião que por pura caridade exerciam medicina (repre-
sentadas em pinturas de Fra Angelico e de Fernando Gallegos – 1745-1550): “Para substituir a perna
gangrenada de um doente que tinham necessidade de amputar foram os Santos ao cemitério, em busca
de uma que lhes pudesse servir para aquele m. O único cadáver utilizável naquela ocasião era o de um
negro etíope, mas os Santos não tinham preconceitos raciais nem problemas de histocompatibilidade.
Retiraram, pois, do cadáver o segmento do membro de que o enfermo carecia e a transplantação foi,
por graças de Deus, um êxito completo, realçado ainda pela diferença da cor.”1
1. AS LENDAS
Historiadores de religião erigem mitos em histórias sérias, maneira de as sociedades
descreverem como a realidade vinha a ser. Mitos são paradigmas para os atos humanos
signif‌icativos, frequentemente histórias sagradas de criativas façanhas de seres sobre-
naturais.
A noção de substituir órgãos doentes do corpo por outros saudáveis, entre diferentes
espécies, remonta pelo menos a três mil anos na Medicina mitológica. É certo que lendas
não podem ser aferidas pela racionalidade, nem há como verif‌icar sua autenticidade. Mas
vários mitos emergiram da fé religiosa de diferentes civilizações: da fé, que não é racional.
Assim, embora a literatura médica contemporânea sobre transplantes até os últimos
cem anos credite ao cirurgião suíço Jacquet Riverton a primazia de tentar um transplan-
te, na Medicina antiga, deuses cimérios, heróis e curandeiros eram partícipes dos atos
cirúrgicos, segundo a associação lendária. Fatos legendários existem, documentados
em civilizações antigas. Os registros mais antigos de Medicina são da Mesopotâmia e do
Egito e, especif‌icamente sobre transplantes, da Índia antiga e da China, onde as escrituras
estão repletas de lendas dessa natureza.2
Os vedas, principais escrituras religiosas do hinduísmo, foram criados há cerca
de 1.200 anos a.C. e contêm 1.028 hinos devocionais e espirituais. Essas escrituras
descrevem vários deuses hindus, incluindo a grande trindade de Brahma – o criador,
Vishnu – o preservador e Mahesh – o destruidor. Tais textos tratam de transplantes.3
1. SOUZA, Armando Tavares de. Curso de história da medicina, p. 141. apud SANTOS, Maria Celeste Cordeiro Leite.
Transplantes de órgãos e eutanásia. São Paulo: Saraiva, 1992, p. 127.
2. BHANDARI, M.; TEWARI, A. Is transplantation only 100 years old? British Journal of Urology, v. 79, Issue 4, p.
495-498, 19 Nov. 1996.
3. A lenda de Ganesha é talvez a mais popular e bem documentada acerca de xenotransplante (de animal para ho-
mem) mítico indiano. Parvati, esposa de Siva, criou Vighneshawara (nome de Ganesha antes do transplante) para
agir como seu guarda f‌iel, junto à porta de seus aposentos, a f‌im de evitar visitas inoportunas de seu marido. Em
BIOÉTICA E BIODIREITO • Maria de FátiMa Freire de Sá e Bruno torquato de oliveira naveS
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Os Demon Myths da antiga literatura chinesa referem-se aos transplantes de coração.
Uma dessas histórias, no clássico Zhai Zhiyi Liao, é aquela do juiz, escrita por Songling,
em 1680. O juiz era descrito fazendo um transplante de coração em Zhu Ertan. Além
dessa façanha, substituiu o feio rosto da mulher de Zhu, por outro lindo, de uma menina
à beira da morte.4
Cumpre ressaltar que o surgimento de transplantes de órgãos como modalidade
terapêutica deve-se em grande parte à Medicina mitológica. A possibilidade de prolon-
gamento da vida substituindo-se partes do corpo foi conceitualmente inspirada por
algumas lendas. A menção de estágios críticos do transplante em tais lendas, como,
por exemplo, seleção apropriada, remoção habilidosa, limpeza das partes utilizáveis,
minimização da demora entre remoção da parte do doador e transplante no receptor
e o uso de poderosas drogas para prevenção da rejeição são relevantes, mesmo hoje.
2. BREVES RELATOS HISTÓRICOS
O Senhor Deus disse:
Não é bom que o homem esteja só; vou dar-lhe uma ajuda que lhe seja adequada. [...] Então o Senhor
Deus mandou ao homem um profundo sono; e enquanto ele dormia, tomou-lhe uma costela e fechou
com carne o seu lugar. E da costela que tinha tomado do homem, o Senhor Deus fez uma mulher, e
levou-a para junto do homem.5
determinado dia, enquanto Parvati tomava banho, Ganesha se posicionava junto ao seu quarto, detido em suas
ocupações. Siva veio visitar a esposa, junto com amigos. O guardião não os deixou entrar. Parvati, que possuía
poderes divinos, sentiu seu orgulho ferido e deu a Ganesha sua força e armas na luta contra Siva e seus aliados.
Vishnu reconheceu que Ganesha seria invencível e aconselhou Siva a usar sua magia para matá-lo. Enquanto
a batalha se desenrolava, Siva rastejou maliciosamente por detrás e cortou a cabeça de Ganesha. Ao saber do
ocorrido, Parvati, furiosa, decidiu destruir o universo. Siva enviou Narada como mediador e Parvati concordou
em abortar seu plano, somente se lhe trouxessem Ganesha de volta à vida, e lhe conferissem divindade, o que
foi aceito por Siva. O corpo do guardião foi limpo e cuidado, mas não podiam achar-lhe a cabeça. Siva ordenou
que trouxessem a cabeça do primeiro ser vivente que encontrassem. Seus assistentes encontraram um elefante,
dormindo com a cabeça voltada para o norte, o que, na religião hindu representa uma ofensa, porque, de acordo
com a tradição, tal circunstância faz com que o polo norte desequilibre a paz do universo. Removida a cabeça do
animal, Brahma, Vishnu e Siva conjugaram seus poderes para f‌ixar a cabeça do elefante ao tronco decapitado de
Ganesha, devolvendo vida ao corpo morto. BHANDARI, M.; TEWARI, A. Is transplantation only 100 years old?
British Journal of Urology, v. 79, Issue 4, p. 495-498, 19 Nov. 1996.
4. Zhu Erh-tan era um homem corajoso, porém curto de raciocínio. Em determinado dia, seus amigos o provocaram
a ir à câmara dos horrores para trazer de volta o juiz infernal. Zhu, ao concordar com o desaf‌io, retornou trazendo
uma imagem do juiz, com um rosto verde e uma barba vermelha. Derramou um pouco de vinho no chão e invocou
a imagem dizendo: “Eu sou um ignorante. Rogo a Vossa Excelência que me perdoe. Minha casa f‌ica próxima e sem-
pre que quiser vos convido a tomar um copo de vinho comigo, com muito prazer.” A partir daí, Lu, o juiz, passou
a frequentar a casa de Zhu. Porém um dia, como Zhu estava muito cansado, foi dormir deixando o juiz ainda a
beber. Enquanto dormia, sentiu uma dor aguda no peito. Ao acordar, constatou que o juiz, sentado à beira da cama,
havia aberto seu peito, prestes a trocar seus órgãos. Zhu gritou, achando que Lu pretendia matá-lo. Contudo, o juiz
tranquilizou-o dizendo que apenas trocou seu coração por outro melhor, que retirou do mundo inferior. Daquele
tempo em diante, Zhu progrediu rapidamente na arte de escrever. Depois de realizada essa cirurgia, Zhu indagou: “Se
V. Exa. pode trocar um coração, com certeza pode fazer o mesmo com o rosto feio da minha esposa. Eu vos suplico
que experimente seu poder nela.” Alguns dias mais tarde, o juiz voltou com a cabeça de uma linda jovem, a qual,
bem sucedidamente, transplantou para a face da esposa de Zhu. BHANDARI, M.; TEWARI, A. Is transplantation
only 100 years old? British Journal of Urology, v. 79, Issue 4, p. 495-498, 19 Nov. 1996.
5. Gn, 1, 21. In: A BÍBLIA: tradução ecumênica. São Paulo: Paulinas, 2002.

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