Capítulo 4 - Relação médico-paciente

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Capítulo 4
RELAÇÃO MÉDICO-PACIENTE
Amamos o médico não pelo seu saber, não pelo seu poder, mas pela solidariedade humana que se revela
na sua espera meditativa. E todos os seus fracassos (pois não estão, todos eles, condenados a perder
a última batalha?) serão perdoados se, no nosso desamparo, percebermos que ele, silenciosamente,
permanece e medita, junto conosco.1
1. RELAÇÃO MÉDICO-PACIENTE: ONTEM E HOJE2
Em tempos passados, era muito comum as pessoas se dirigirem aos médicos com
grande temor reverencial, mostrando-se gratos e sempre devedores de alguma consi-
deração em relação a seus serviços.
A relação médico-paciente construíra-se sobre o respeito e a amizade – premissas
indispensáveis. Não havia espaço para desconf‌ianças e muito menos para questionamen-
tos, af‌inal, a relação social da qual participavam, médico e paciente, não admitia dúvidas
sobre a qualidade dos serviços prestados que, além de tudo, vinham acompanhados de
duradoura amizade. Trata-se do médico de família.
Embora seja possível a manutenção da amizade e da consideração, o fantástico
desenvolvimento científ‌ico, o surgimento de grandes hospitais e centros de saúde e a
necessidade cada vez mais premente de vinculação a algum plano de saúde fez com que
o prof‌issional da Medicina se distanciasse de seu paciente. Modif‌ica-se, assim, a deno-
minação dos sujeitos da relação jurídica, que passam a f‌igurar como usuário (paciente)
e prestador de serviços (médico). A ótica agora é a de uma sociedade consumista, cada
vez mais consciente de seus direitos e mais exigente quanto aos resultados.
O que frequentemente se diz, nos dias de hoje, é que a tecnologia, com suas apa-
relhagens cada vez mais sof‌isticadas, substituiu, em muito, o contato do médico com
o paciente. O calor humano do prof‌issional tornou-se mais distante. É certo que o de-
senvolvimento tecno-científ‌ico é necessário, mas deve ser posto à disposição da saúde
e bem estar da pessoa, trazendo por consequência, melhoria em sua qualidade de vida.
As crescentes especializações dos médicos, embora necessárias, causam afastamento
lógico entre este e o paciente. O médico deixou de ser aquele prof‌issional de conf‌iança
da família, mas o “especialista”, indicado por alguém, ou encontrado, por coincidência,
1. ALVES, Rubem. O retorno e terno. 14. ed. Campinas: Papirus, 1998, p. 119.
2. Parte da concepção aqui exposta encontra-se em SÁ, Maria de Fátima Freire de. Direito de morrer (1ª e 2ª edições
publicadas pela Editora Del Rey) e, posteriormente, em SÁ, Maria de Fátima Freire de; MOUREIRA, Diogo Luna.
Autonomia para morrer. 2. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2015.
BIOÉTICA E BIODIREITO • Maria de FátiMa Freire de Sá e Bruno torquato de oliveira naveS
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numa dessas visitas a determinado hospital, ou aquele conveniado ao plano de saúde
do paciente.
A interposição institucional, seja pública ou privada, nos moldes em que se encon-
tra, impõe certo incômodo na relação médico-paciente. O que se vê é o doente sendo
tratado pelo nome da doença ou pelo apartamento ou enfermaria. Não há tempo sequer
do paciente conhecer seu médico, nem este de saber o nome de quem está tratando.
Os meios de comunicação trazem a intimidade da vida das pessoas ao conheci-
mento de todos. Muitas vezes veiculam campanhas contra a classe médica. O resultado
é a hostilidade para com os prof‌issionais, que têm suas condutas generalizadas a partir
de maus exemplos.
Todos esses fatores criam constrangimentos na relação médico-paciente. É preciso
competência, maturidade e sensibilidade, principalmente, por parte do prof‌issional no
sentido de redirecionar esta relação.
Outro aspecto que coloca em voga a relação médico-paciente diz respeito à concep-
ção de “vida boa” de cada um, em especial nas situações de terminalidade da vida. Uma
forte corrente médica alega que, em razão do juramento de Hipócrates, a vida deve ser
preservada de toda maneira. Asseveram ser a vida um bem absoluto e supremo. Outra
corrente, mais restrita, entende que a vida tem dimensão muito mais biográf‌ica que
biológica, razão pela qual, não se pode prolongar a vida de um doente terminal pelo
simples fato de mantê-lo vivo. Somos concordes com esta última corrente, como se verá
também em capítulo mais à frente, em razão do compromisso que a Modernidade tem
para com o Direito, qual seja, o de garantir iguais liberdades fundamentais.
Não há um ethos comum de determinação de vida boa, razão pela qual esta não pode
ser sempre compreendida como o simples respirar, isto é, não somente como garantia
de sobrevida, ou como garantia da “batida de um coração”. A discussão, que permeia a
garantia do direito à vida, versa a respeito de sua qualidade e dignidade, como construção
diuturna. Surge, pois, um questionamento intrigante: pacientes terminais têm direito
de morrer em paz e com dignidade? Ou devem sobreviver, mesmo que vegetativamente,
até a parada respiratória ou a morte encefálica?
Uma unidade de terapia intensiva (UTI) moderna deixa marcas indeléveis em quem
a visita. Ali se encontram doentes em estado crítico, que só estão vivos por estarem ali.
Vivos, mas cercados de complexos aparelhos eletrônicos. São f‌ios e tubos que entram e
saem de orifícios, pontos na pele e cavidades do paciente. Respiradores e marca-passos
cardíacos continuamente ligados, com batidas na mesma cadência. Alguns indivíduos
conscientes e outros inconscientes. Vários possuem lesões cuja sequela se pode di-
mensionar além de quadros clínicos que inspiram cuidados diários: um dia os rins não
funcionam bem, em outro o doente é acometido por inevitáveis infecções decorrentes
da fragilidade do corpo, e assim por diante.
Há casos de pacientes com lesões provenientes de doenças degenerativas, cujas
curas não foram encontradas pela Medicina, e veem suas vidas se esvaindo, passo a pas-
so, lentamente, em meio a perdas e retomadas de consciência. Em decorrência dessas
mesmas doenças, passam, gradativamente, a depender da boa vontade de outrem, para
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CAPítUlO 4 • RElAÇÃO MÉDICO-PACIENtE
que as representem ou as assistam, conforme o caso, sob o ponto de vista jurídico. Há
situações que nem a assistência nem a representação podem ser tidas como garantidoras
de seus direitos.
Não se pode olvidar, ainda, do aspecto da dependência física, porque, pessoas assim,
deixam de ter controle sobre suas sensações e estímulos, voltando ao tempo de criança,
necessitando que alguém lhes promova a higiene pessoal, alimentem-nas e vistam-nas,
ainda que seja apenas um avental para cobrir o corpo magro.
Não se está dizendo que pessoas “hospedadas” em uma UTI não tenham chances de
viver bem. Claro que não. Aliás, hodiernamente, o conceito de UTI é outro. Em muitos
casos, ela é o passaporte para a vida. A argumentação que ora se faz não diz respeito a
estas pessoas que, a título de exemplo, tiveram enfarto e ali se encontram monitoradas,
no aguardo de recuperação, com grande chance de ocorrer, em que pese o quadro ins-
pirador de cuidados, mas àquelas pessoas na iminência da morte ou àquelas que vivem
apenas porque ligadas a aparelhos, deixando de ser um ser humano autônomo, já que
as máquinas “fazem parte” de seu corpo.
Referimo-nos à UTI, mas se pode estender o raciocínio àqueles indivíduos que já
receberam “alta médica”, não porque se curaram ou obtiveram melhora física ou mental,
mas porque a vida deles, a partir dali, será vivida no leito, em companhia de enfermeiros
vinte e quatro horas por dia, alimentados por meio de sondas e sem qualquer consciência.
Pior sorte é a dos que não têm condições de pagar acompanhantes ou enfermeiros,
sem dinheiro para adquirir alimentação industrial, oxigenação e remédios. Há os que
não têm família, e por isso são deixados em qualquer instituição governamental, sem
cuidados, até que a morte lhes traga o descanso. E, ainda, os que têm família, mas essa
não os quer mais...
Pode-se dizer que tais condições, que não são raras, permitem o desfrute de uma
vida digna? Como se def‌inir vida digna, à luz do Direito?
A vida deve ser encarada em seu ocaso, para que lhe seja devolvida a dignidade
perdida. São muitos os doentes que se encontram jogados em hospitais, expostos a uma
perspectiva de sofrimento, em terapias intensivas e em emergências. O desdobramento
disso? Uma parafernália tecnológica que os prolonga e os acrescenta. Inutilmente.
2. AUTONOMIA PRIVADA E CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO3
No campo biológico, o poder de autodeterminação do paciente pode ser sintetizado
na expressão “consentimento livre e esclarecido”.
3. Para uma visão mais abrangente da autonomia privada sugere-se a obra “NAVES, Bruno Torquato de Oliveira. O
direito pela perspectiva da autonomia privada: relação jurídica, situações jurídicas e teoria do fato jurídico na segun-
da modernidade. 2. ed. Belo Horizonte: Arraes, 2014.” e o segundo volume da coleção Direito Civil: atualidades.
Parte da concepção aqui exposta encontra-se naquela primeira obra e no seguinte capítulo da segunda: NAVES,
Bruno Torquato de Oliveira. Da quebra da autonomia liberal à funcionalização do direito contratual. In: NAVES,
Bruno Torquato de Oliveira; FIUZA, César; SÁ, Maria de Fátima Freire de (Coords.). Direito civil: atualidades
II – Da autonomia privada nas situações jurídicas patrimoniais e existenciais. Belo Horizonte: Del Rey, 2007, v.
2, p. 229-251.

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