Capítulo 16 - Bioética animal e proteção jurídica

Páginas339-354
Capítulo 16
BIOÉTICA ANIMAL E PROTEÇÃO JURÍDICA
De qualquer maneira que se interprete, qualquer consequência prática, técnica, cientíca, jurídica,
ética ou política que se tire, ninguém hoje em dia pode negar esse evento, ou seja, as proporções sem
precedentes desse assujeitamento do animal. Esse assujeitamento cuja história tratamos de interpretar,
podemos chamá-lo violência, mesmo que seja no sentido mais neutro do ponto de vista moral desse
termo e mesmo quando a violência intervencionista se pratica, em certos casos, bastante minoritários
e nada dominantes, não esqueçamos jamais, a serviço ou para a proteção do animal, mas mais fre-
quentemente do animal humano.1
1. INTRODUÇÃO
A Bioética e o Direito vivem um momento paradoxal entre a mudança e a con-
tinuidade. Entre a consideração do ser humano e a consideração do outro, que não é
humano. Acostumados com a tradição e a formalidade do passado, não é infrequente
que se tenha dif‌iculdades para aceitar diferentes percepções sociais.
Nesta trilha de resistência, parece que o Direito brasileiro tem descoberto a aporia
da situação jurídica dos animais. Vozes bradam há anos por transformações, mas recor-
rentemente ecoavam no vazio de tradicionalismos universitários e judiciais.
O movimento de defesa dos animais, impulsionado a partir da década de 1970, fez
repercussão lenta no Direito, mas impossível passar despercebido. Uma série de legisla-
ções tem sido alterada no mundo a f‌im de restringir a experimentação com animais, as
condições estressantes dos criadouros e o sofrimento desnecessário em eventos culturais
e ambientes de lazer.
Na Alemanha, em 1990, o BGB (Código Civil) introduziu o § 90a, que estabeleceu:
“Animais não são coisas. Eles são protegidos por leis especiais. As disposições aplicáveis
a coisas são-lhes aplicáveis por analogia, desde que não haja disposição contrária.” A
então novidade da alteração reverberou em outros ordenamentos como início de um
despertar no Direito.
A Diretiva 63 da União Europeia, publicada em 2010, é um marco para a elimina-
ção gradativa da experimentação com animais. Ela expressa o bem-estar animal como
um valor da União Europeia e impõe a adoção de métodos que poupem os animais não
humanos de sofrimento e angústia e que primem pela utilização do menor número
possível desses animais.
1. DERRIDA, Jacques. O animal que logo sou. 2. ed. Tradução de Fábio Landa. São Paulo: Unesp, 2011, p. 51-52.
BIOÉTICA E BIODIREITO • Maria de FátiMa Freire de Sá e Bruno torquato de oliveira naveS
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Em janeiro de 2015, a Assembleia Nacional da França alterou o Código Civil fran-
cês, de 1804, reconhecendo os animais como “seres vivos dotados de sensibilidade”,
em vez de considerá-los apenas como bens móveis, como antes.
No Brasil, o Projeto de Lei do Senado 351/2015 pretende modif‌icar o Código
Civil para estabelecer que os animais não são coisas. Em tramitação na Câmara sob
o n. 3.670/2015, o Projeto ainda está para ser votado em plenário e segue a tendência
ocidental de “discutir a natureza jurídica dos animais [...], visando descaracterizá-los
como coisa, sem, no entanto, atribuir-lhes personalidade [...]”2.
Todas essas mudanças expõem a alteração da percepção social acerca dos animais,
mas é claro que sempre esbarram na questão da desigualdade e da má condição de vida do
ser humano. Defender os animais não pode ser negligenciar o ser humano, ao contrário,
é a reaf‌irmação do ser humano e de sua capacidade de lidar com o alter diferente. Com
base na epígrafe desse capítulo e, para apresentar essa proximidade entre ser humano e
“animal”, nada melhor que a argúcia de Derrida traduzida num simples questionamento:
“Que animal? O outro.”3
2. DA SENCIÊNCIA ANIMAL
Senciência é a qualidade daquele que sente. Por essa expressão, pretende-se quali-
f‌icar os animais a partir dos sentimentos de prazer e de dor que podem expressar.
A condição de um ser senciente já justif‌ica uma ação que evite a dor desnecessária.
E como saber se os animais sentem dor?
Como não podemos sentir a dor pelo outro, o sentimento de dor é demonstrado
tanto neurologicamente como comportamentalmente. Como Singer4 aponta, sabemos
que alguém está sentindo dor porque ele dá manifestações desse sentimento. Contrações
musculares, lágrimas, sudorese, reações da pupila demonstram o incômodo e mesmo
a insuportabilidade do sentimento.
De forma semelhante, podemos ver que os animais manifestam pelo comporta-
mento a dor que sentem, com gemidos, contrações musculares e perda da consciência.
Por meio de imagens de tomograf‌ia e de ressonância magnética funcional também
temos indicativos do sentimento de dor, a partir das partes que são ativadas quando há
sensações desagradáveis.
Diversas normas pelo mundo dispensam especial proteção aos animais sencientes
na sua utilização em experiências e demonstrações científ‌icas e didáticas. Destaca-se
a Diretiva 63, de 2010, da União Europeia que inclui, de forma expressa nesse rol, os
cefalópodes, como o polvo, a lula, a sépia e o náutilo. No considerando n. 8, a Diretiva
expressa:
2. ARAÚJO, Ana Thereza Meirelles. A proteção ao ser humano no direito brasileiro: embrião, nascituro e pessoa e a
condição de sujeito de direito. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2016, p. 180.
3. DERRIDA, Jacques. O animal que logo sou. 2. ed. Tradução de Fábio Landa. São Paulo: Unesp, 2011, p. 15.
4. SINGER, Peter. Ética prática. 3. ed. São Paulo: Martin Fontes, 2002.

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