Capítulo 9 - Dados genéticos humanos

Páginas179-202
Capítulo 9
DADOS GENÉTICOS HUMANOS1
Mesmo que o diálogo entre o lósofo e o jurista, bem como entre estes e as suas circunstâncias (pessoais
e sociais) seja marcado por convergências e divergências de toda ordem, é certo que tal debate, ainda
mais quando travado na esfera pública e pautado pela prática racional discursiva (necessariamente
argumentativa) constitui o melhor meio de, pelo menos numa sociedade democrática, estabelecer os
contornos nucleares da compreensão das diversas dimensões da dignidade e de sua possível realização
prática para cada ser humano. Assim, não há mais – ao contrário do que alguns parecem crer – como
desconhecer e nem desconsiderar o papel efetivo do Direito no que diz com a proteção e promoção
da dignidade.2
1. INTRODUÇÃO
Ao tratarmos de dados genéticos humanos, mais uma vez em pauta está a questão
da dignidade da pessoa humana, tão debatida por juristas do mundo inteiro. Poderíamos
até começar com um primeiro tópico intitulado relações entre dignidade humana e desaf‌ios
genéticos. Contudo, novamente recorremos à proposta por Hasso Hofmann3 que, em
termos teoréticos, distingue a dignidade como dádiva e como prestação.
A dignidade como dádiva se verif‌ica a partir de qualidades ou características da
pessoa humana, não sendo fruto da escolha de cada um, af‌igurando-se verdadeiro dom. A
dignidade como prestação ressalta a experiência de cada pessoa, na busca da construção
da própria identidade e está vinculada às relações sociais, no convívio com o próximo.
Mas por que estamos a dizer isso? Qual a relação entre dignidade e identidade
genética?
Podemos dizer que o conceito de identidade genética traz no seu bojo uma cor-
respondência ao genoma de cada ser humano, ou seja, o fundamento biológico ínsito
a cada um. Estamos diante da constatação de que todos temos um genoma irrepetível.
Em outro sentido, a expressão “identidade genética” pode ser designado para carac-
terizar a mesma constituição genética entre dois ou mais seres. É o mundo da clonagem.
1. Para aprofundamento do tema “dados genéticos humanos” sugerimos a leitura das obras: NAVES, Bruno Torquato
de Oliveira. Direitos de personalidade e dados genéticos. Belo Horizonte: Escola Superior Dom Helder Câmara,
2010 e NICOLÁS JIMÉNES, Pilar. Protección jurídica de los datos genéticos de carácter personal. Madrid: Comares,
2006.
2. SARLET, Ingo Wolfgang. As dimensões da dignidade da pessoa humana: uma compreensão jurídico-constitucional
aberta e compatível com os desaf‌ios da biotecnologia. In: SARMENTO, Daniel; PIOVESAN, Flávia. Nos limites
da vida: aborto, clonagem humana e eutanásia sob a perspectiva dos direitos humanos. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2007, p. 210-211.
3. HOFFMAN, Hasso. La promessa della dignità umana. La dignità dell’uomo nella cultura giuridica tedesca. Rivista
Internazionale di Filosof‌ia del Diritto, Roma, série 4, ano 76, p. 620-650, out./dez 1999.
BIOÉTICA E BIODIREITO • Maria de FátiMa Freire de Sá e Bruno torquato de oliveira naveS
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Af‌igura-se, aqui, o direito à identidade como um direito à diferença, sendo vedadas a
repetibilidade programada e a alteração dessa base biológica, a não ser, no último caso,
se se tratar de escopos terapêuticos.
Finalmente, como terceira acepção, vislumbramos o termo identidade genética
como nível prévio à identidade pessoal, sendo aquela substrato fundamental desta. Nessa
seara, o que importa é saber a origem genética, a verdade sobre a própria progenitura.
Também diz respeito à possibilidade de saber ou de se recusar saber sobre diagnósticos e
prognósticos de doenças e pesquisas realizadas. Mas não só isso, porquanto a identidade
de uma pessoa não se reduz aos seus aspectos genéticos. Também inf‌luem na formação
pessoal complexos fatores educativos e ambientais, assim como os laços afetivos, sociais,
espirituais e culturais, que conservam uma dimensão de liberdade.
O conhecimento dos dados genéticos suscita, também, problemas relacionados
a uma nova dimensão da intimidade. Intimidade é a esfera individual de projeção do
indivíduo em sua relação interior. O direito à intimidade genética construiu-se a partir
do princípio constitucional da intimidade, e pode ser def‌inido como o direito de deter-
minar as condições de acesso à informação genética. Está ligado de maneira estreita ao
princípio da dignidade humana, razão pela qual sua interpretação traz consequências
relevantes na determinação dos sujeitos ativo e passivo.
Quem seriam os sujeitos ativos do direito à intimidade genética? O problema está
em determinar se o sujeito é a pessoa natural ou o ser humano. As consequências são
claras. Se entendermos que somente a pessoa natural pode ser sujeito ativo do direito
à intimidade genética, a conclusão que se extrai é óbvia: há entes que também podem
ser qualif‌icados como “humanos”, ou “pessoas por nascer”, porque são possuidores de
um genoma diferenciado, mas desprovidos da proteção que se dá aos seres nascidos.
De acordo com esse raciocínio, todos os seres não nascidos poderiam ser objeto de
manipulação genética.
Outro aspecto que devemos enfrentar é o relativo ao direito à informação genéti-
ca. Uma vez realizada a pesquisa com o consentimento do sujeito ativo, o resultado da
mesma deve ser-lhe disponibilizado. Mas, e se houver recusa quanto à vontade de saber
a verdade sobre os dados genéticos? O direito de não saber dos resultados das pesquisas
af‌igura-se direito personalíssimo, devendo, portanto, ser sempre respeitado?
Esse direito de não saber levanta especial polêmica quando se trata de análises ou
provas genéticas. É que certas provas genéticas podem gerar informações essenciais
não só ao interessado, sujeito da pesquisa, mas também a terceiros, como familiares e
descendentes. E aí se instala o dilema. O que fazer se o indivíduo se nega a conhecer o
resultado da pesquisa e ainda não permite que se disponibilize a informação aos fami-
liares que poderiam se ver afetados?
Todos esses novos problemas só podem ser visualizados em razão do estado do
conhecimento acerca das informações genéticas do ser humano – os dados genéticos.
E esse conhecimento deu-se, especialmente, com o Projeto Genoma Humano, que a
partir de 1990 cataloga e analisa os dados genéticos contidos nas células humanas.
Passamos a analisá-lo.

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