Capítulo 10 - Investigação, manipulação e aconselhamento genéticos

Páginas203-234
Capítulo 10
INVESTIGAÇÃO, MANIPULAÇÃO E
ACONSELHAMENTO GENÉTICOS
O novo homem
O homem será feito
em laboratório.
Será tão perfeito
como no antigório.
[...] Dispensa-se amor,
ternura ou desejo.
Seja como or
(até num bocejo)
salta da retorta
um senhor garoto.
Vai abrindo a porta
com riso maroto:
‘Nove meses, eu?
Nem nove minutos.’
Quem já conheceu
melhores produtos?
A dor não preside
sua gestação.
Seu nascer elide
o sonho e a aição.
Nascerá bonito?
Corpo bem talhado?
Claro: não é mito,
é planicado.
Nele, tudo exato,
medido, bem-posto:
o justo formato,
o standard do rosto.
Duzentos modelos,
todos atraentes.
(Escolher, ao vê-los,
nossos descendentes.)
Quer um sábio? Peça.
Ministro? Encomende.
Uma cha impressa
a todos atende.
Perdão: acabou-se
a época dos pais.
Quem comia doce
já não come mais.
Não chame de lho
este ser diverso
que pisa o ladrilho
de outro universo.
Sua independência
é total: sem marca
de família, vence
a lei do patriarca.
Liberto da herança
de sangue ou de afeto,
desconhece a aliança
de avô com seu neto.
Pai: macromolécula;
mãe: tubo de ensaio
e, per omnia secula,
livre, papagaio,
sem memória e sexo,
feliz, por que não?
pois rompeu o nexo
da velha Criação,
eis que o homem feito
em laboratório
sem qualquer defeito
como no antigório,
acabou com o Homem.
Bem feito.1
1
1. ANDRADE, Carlos Drummond de. Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2003, p. 637-640.
BIOÉTICA E BIODIREITO • Maria de FátiMa Freire de Sá e Bruno torquato de oliveira naveS
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1. INTRODUÇÃO
Este capítulo apresenta diversas temáticas relacionadas à investigação e à mani-
pulação de genes humanos para f‌ins de pesquisa ou tratamento: a investigação genética
de forma ampla, abordando a liberdade de pesquisa e seus limites éticos e jurídicos; o
aconselhamento genético; o diagnóstico genético embrionário e suas consequências
jurídicas; a terapia gênica; e a clonagem humana.
A investigação genética, como subdivisão da investigação científ‌ica, pauta-se na
liberdade de pesquisa constitucionalmente garantida com os limites bioéticos e jurídicos
trazidos por normas internacionais e nacionais.
A Declaração Internacional sobre Dados Genéticos Humanos, no artigo 2o, XIV, def‌ine
aconselhamento genético como o:
procedimento que consiste em explicar as consequências possíveis dos resultados de um teste ou de
um rastreio genético, suas vantagens e seus riscos e, se for caso disso, ajudar o indivíduo a assumir
essas consequências a longo prazo. O aconselhamento genético tem lugar antes e depois do teste ou
do rastreio genético.
O aconselhamento genético pode ser pré-conceptivo, conforme resulte de diagnós-
tico realizado antes da concepção; pré-implantacional, se realizado após a concepção
in vitro, mas antes da implantação; ou pré-natal, feito depois da implantação no útero,
já com testes no nascituro.
Em análise cronológica, o aconselhamento genético pode vir antes, durante ou
depois do diagnóstico genético. O aconselhamento virá antes do diagnóstico, quando
seu objetivo é alertar, aos que o buscam, as implicações e dilemas que o diagnóstico
pode suscitar. É esclarecer, inclusive, o direito a saber e não saber e suas consequências.
Virá durante e posteriormente ao diagnóstico quando o médico tem o conhecimento
parcial ou total, pautado na anamnese e/ou em exames, e uma vez ciente das opções o
paciente pode decidir.
Sendo o diagnóstico genético embrionário, pode-se falar em: diagnóstico pré-im-
plantacional (DGPI) ou diagnóstico pré-natal, em sentido estrito. O DGPI é a submissão
de um embrião, no seu estágio inicial de desenvolvimento, a um exame genético de pre-
caução. Há, também, a possibilidade de o diagnóstico de uma doença genética ocorrer
em um embrião já implantado – o diagnóstico genético pré-natal em sentido estrito.
O exame genético é muito requerido por casais que querem evitar o risco de trans-
missão de doenças hereditárias, especialmente aquelas ligadas ao sexo. Caso se conf‌irme
alguma doença, em diagnóstico pré-implantacional, os casais podem decidir pela não
implantação do embrião no útero materno, poupando a mãe, inclusive, de riscos de uma
possível interrupção de gravidez. Se a anomalia se apresentar em diagnóstico pré-natal,
duas serão as opções: aborto, na forma e momento permitidos pelo ordenamento, ou o
tratamento genético, normalmente por meio da terapia gênica.
A terapia gênica é o instrumento capaz de promover a alteração do material genético
“doente” por meio da inserção de nova sequência de DNA. Se realizada em células-tronco,
a alteração será transmitida no momento da replicação genética e da diferenciação celular.
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CAPítUlO 10 • INVEStIGAÇÃO, MANIPUlAÇÃO E ACONSElHAMENtO GENÉtICOS
As células-tronco são aquelas com aptidão de autorreplicação, isto é, são células
que se caracterizam pela capacidade de gerar cópias idênticas de si mesmas e com po-
tencialidade de diferenciar-se em vários tipos de células ou tecidos humanos. Podem
elas ser obtidas de embriões concebidos em laboratório e, geralmente, não utilizados
nos processos de reprodução assistida, bem como podem ser extraídas de alguns tecidos
do corpo humano, como medula óssea e cordão umbilical. Contudo, as células-tronco
adultas possuem capacidade de diferenciação bastante limitada, enquanto as células-
-tronco embrionárias podem diferenciar-se em quase todos os tecidos que formam o
complexo corpo humano, recebendo, respectivamente, as denominações de pluripo-
tentes e totipotentes.
As células-tronco totipotentes são encontradas no embrião, durante as primeiras
fases de divisão celular, até o terceiro ou quarto dia do seu desenvolvimento, e a pesquisa
com esse tipo de célula vem sendo conduzida com o intuito primeiro de desenvolver
terapias contra doenças ainda incuráveis ou mesmo prevenir outros tantos males que
atingem a saúde do ser humano. Espera-se compreender o que leva determinada cé-
lula-tronco a diferenciar-se num específ‌ico tipo de tecido humano, e assim aprimorar
as técnicas de terapia gênica para utilizar células-tronco como substitutas em tecidos
lesionados ou doentes.
Por último, a clonagem é um processo de reprodução – de células, de tecidos ou
mesmo do completo organismo – que resulta na obtenção de cópias geneticamente
idênticas. Pode ser natural ou induzida por meio de manipulação e, nesse caso, é deli-
mitada pela técnica que é empregada: clonagem terapêutica ou clonagem reprodutiva.
2. INVESTIGAÇÃO GENÉTICA E LIBERDADE DE PESQUISA
O respeito às minorias e à pluralidade só é possível garantindo-se a concepção de
vida boa para cada um. Não é juridicamente aceitável, em um Estado Democrático de
Direito, a imposição do conteúdo de valores universalizantes. Logo, o desaf‌io da época
em que vivemos é trazer a concepção do Direito como racionalidade de f‌ins, ao autorizar,
ordenar ou proibir uma conduta, bem diversa da racionalidade instrumental defendida
pela Medicina que busca, tão somente, a ef‌icácia da medida tomada.
Enquanto o paradigma liberal preocupava-se em estabelecer, aprioristicamente,
quais os objetivos e como atingi-los, a democracia contemporânea reconhece que a
autonomia privada legitima a própria manutenção do Estado de Direito.
Na realização de análises que buscam obter dados genéticos vislumbramos dois
tipos de liberdade: a liberdade geral do indivíduo e a liberdade específ‌ica do investigador.
A primeira é predicado de todo ser humano; a segunda concerne aos pesquisadores e
instituições que desenvolvem técnicas, procedimentos e produtos.
O princípio constitucional da liberdade tem como pressuposto o livre desenvol-
vimento da personalidade, que, em análise sintética, atribui aos indivíduos o direito de
tomar decisões em todas as esferas da vida privada, desde que não haja proibição legal.
Voltando para o aspecto dos dados genéticos, implica dizer que a pessoa é livre, tanto

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