A cláusula de wash-out nos contratos de compra e venda de commodities a preço fixo

AutorJudith Martins-Costa e Rafael Branco Xavier
Ocupação do AutorProfessora de Direito Civil na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1992 a 2010)/Mestrando em Direito Civil pela Universidade de São Paulo
Páginas785-817
A cláusula de wash-out
Judith Martins-Costa e Rafael Branco Xavier1
Sumário. Introdução. I) A cláusula wash-out considerada em
sua origem. (i) características gerais do contexto em que
inserta; (ii) características específicas. II. “Acomodação” da
cláusula wash-out ao Direito brasileiro. (i) os possíveis suportes
fáticos; (ii) a disciplina aplicável quando a cláusula wash-out se
aproximar, funcionalmente, de uma cláusula penal.
Conclusões.1
Introdução.
Contratos constituem – como expresso em célebre metáfora –
uma “ponte lançada para o futuro”2. Sua função precípua, como ves-
te jurídica de uma operação econômica3, está em ajustar no presente
o que deverá ser cumprido no futuro, para tanto alocando entre as
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1 Judith Martins-Costa foi Professora de Direito Civil na Faculdade de
Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1992 a 2010). É Livre-
Docente e Doutora em Direito pela Universidade de São Paulo. É Presidente do
Instituto de Estudos Culturalistas – IEC e membro da Academia Brasileira de
Letras Jurídicas, dentre outras associações. Advogada e sócia fundadora de
Judith Martins-Costa Advogados, atua como Parecerista e Árbitra (ICC, CCBC,
CMA-CIESP, FGV, CAMARB). Rafael Branco Xavier é Mestrando em Direito
Civil pela Universidade de São Paulo. Advogado, sócio de Judith Martins-Costa
Advogados e Membro do Instituto de Estudos Culturalistas – IEC. Os autores
agradecem a leitura de Giovana Benetti e Fernanda Martins-Costa, e o auxílio na
pesquisa de Pietro Webber e Catarina Paese.
2 A metáfora é de CARBONNIER, Jean. Flexible Droit. 2. ed. Paris: LGDJ,
1971, p. 120.
3 Na conhecida lição de ROPPO, Enzo. O Contrato. Tradução portuguesa de
Ana Coimbra e M. Januário C. Gomes. Coimbra: Almedina, 1988, p. 8 e ss.
partes os riscos que o futuro pode trazer. Mas o futuro é incerto, e a
travessia da ponte entre o ontem e o amanhã é sujeita a perturbações
de variada ordem. Quem contrata “negocia em um mundo que não é
estável”, disse-o, há décadas, Pontes de Miranda4.
Em certos contratos, essa incerta travessia entre o ontem (mo-
mento da conclusão contratual) e o amanhã (o tempo do seu adim-
plemento) é particularmente sujeita a vicissitudes que nem sempre
os contraentes podem controlar. Assim se verifica, por exemplo,
nos contratos de comercialização de energia elétrica: com preço
pré-ajustado no ambiente de contratação livre (ACL); em certos
contratos de compra e venda de participações societárias com fe-
chamento diferido; e nos contratos de compra e venda de commo-
dities a preço fixo, com entrega a termo certo. Em todos eles, os
contraentes bem avisados – sabendo que encontrarão fatores de
perturbação das prestações ajustadas que estão fora de seu contro-
le ou gestão – devem cogitar de inserir no ajuste mecanismos que
permitam minimizar o risco da instabilidade ínsita à passagem do
tempo. Um desses mecanismos é a cláusula wash-out, comumente
inserta em contratos de compra e venda de commodities a preço
fixo, com entrega a termo certo5.
A prática – essa incessante e rica criadora de modelos jurídicos
negociais – elaborou a cláusula wash-out como mecanismo voltado
à solução de problemas ligados ao fato da eventual não entrega,
pelo produtor/vendedor6, no termo ajustado, da mercadoria adqui-
rida pelo comprador. Este é, por seu turno, também vendedor ou
exportador em face de ulteriores compradores ou importadores,
pois, como se sabe, a operação econômica da aquisição e distribui-
ção de commodities tem a forma de uma estrutura contratual enca-
deada, ligando, desde o produtor nacional, até o consumidor que
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4 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Priva-
do. Tomo XXV. Rio de Janeiro: Borsoi, 1959, § 3.068, 1.
5 No cenário nacional, o tema é praticamente inédito. Tem-se notícia de ape-
nas um trabalho acadêmico a respeito: TREVIZAN, Ana Flávia. “Wash out” fren-
te ao ordenamento jurídico brasileiro. In: SOARES, Danielle; SALDANHA,
Evely; SOUZA, Murilo (Orgs.). Direito na fronteira e as fronteiras do direito.
Cáceres: Unemat, 2017, p.7-26.
6 Como se verá a seguir, a cláusula é corrente nas relações contratuais entre
produtores agrícolas e comercializadoras de commodities, muito embora seja per-
feitamente plausível cogitar a sua pactuação nos demais elos contratuais do setor.
pode estar situado em outro país. Sendo assim, compreensivel-
mente, a quebra de um dos elos dessa cadeia contratual, repre-
sentada pela ausência da prestação devida – na quantidade e tempo
ajustados – provoca, também, problemas em cadeia, pois a econo-
mia globalizada tem, nos contratos, os elos do seu tecido conjunti-
vo.
Em termos gerais, a cláusula wash-out estabelece o disparo de
uma consequência pecuniária, consistente no pagamento da dife-
rença entre o preço contratado e o valor de mercado das mercado-
rias – se positiva for a diferença –, pelo vendedor que não entregou
ou não entregará a commodity7. Sua denominação remete ao verbo
frasal “to wash-out”, que tem diversos significados na língua ingle-
sa, dentre os quais o de “cancelar em função de chuva pesada”8. Em
consonância à metáfora aí implicada, um significado imediatamen-
te conotado à expressão, no terreno contratual, indica o mecanis-
mo apto a provocar a extinção (“cancelamento”) do contrato por
causa superveniente à sua conclusão e não necessariamente atrela-
da ao fato do inadimplemento imputável, muito embora, como re-
gra, a eficácia da cláusula seja disparada por alguma falta imputável
ao devedor que não entrega a mercadoria prometida.
Numa acepção amplíssima, portanto, realizar o wash-out de um
contrato (“to wash-out a contract”) indica a ação de extinguir a sua
eficácia. Todavia, essa é ainda uma indicação muito genérica, pois
a cláusula wash-out tem outras funções. Sua qualificação no Direi-
to brasileiro não é de modo algum singela, suscitando questionar:
extinguir o contrato, equivaleria à resolução contratual (lato sen-
su)? Fazer nascer outra prestação, substitutiva à prestação acorda-
da, de entregar mercadoria, seria uma cláusula penal? Ou modifi-
car o ajustado, fazendo nascer outra prestação, indicaria uma espé-
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7 Por exemplo: “No caso de inadimplemento, e a critério exclusivo do com-
prador, o vendedor deverá realizar o pagamento de multa, consistente em: a)
Pagamento do diferencial apurado entre o preço da soja ajustado no Contrato e
o preço de mercado da soja, vigente na data do inadimplemento, caso este último
venha a superar o primeiro”;
8 Assim está no Cambridge Dictionary: “wash-out something. Phrasal verb.
(Be destroyed). (esp. Of bad or violent Weather). To cause something to fail,
stop, or be destroyed”. Disponível em: https://dictionary.cambridge.org/pt/di-
cionario/ingles/wash-out-something. Último acesso em 27 de abril de 2021.

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