Conclusão: o tratamento retórico do problema da fundamentação ética do direito e a possibilidade da ataraxia

AutorJoão Maurício Adeodato
Ocupação do AutorProfessor Titular da Faculdade de Direito do Recife
Páginas331-369
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CAPÍTULO DÉCIMO
Conclusão: o tratamento retórico do problema da
fundamentação ética do direito e a possibilidade da
ataraxia
10.1. Responsabilidade pela contingência e o pro-
blema do paternalismo na ética. 10.2. Fundamen-
tação como o quinto elemento da concretização
dogmática: o problema da legitimidade em tempos
de esvaziamento e pulverização éticos. 10.3. Ceti-
cismo, humanismo e historicismo nas origens da
filosofia do direito: advogados tornam-se filósofos.
10.4. O problema da universalização de direitos
subjetivos: direitos humanos e internacionaliza-
ção do direito positivo. 10.5. Retórica analítica
como metódica jurídica. Os juristas como herdei-
ros dos sofistas e guardiães da democracia.
10.1. Responsabilidade pela contingência e o problema do
paternalismo na ética
Tem-se insistido aqui que uma das ideias mais arraigadas
no senso comum parece ser a de causalidade, combatida por
David Hume, conforme anunciado no capítulo quarto atrás.
A filosofia retórica deste livro é crítica da concepção causal
JOÃO MAURÍCIO ADEODATO
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da natureza, segundo a qual o passado determina o futuro,
exatamente por conceber o mundo real como contingência
que é construída a cada momento pela própria comunicação,
a retórica material. Quer-se enfatizar a tese de que a realidade
é constituída pela linguagem e que a linguagem é constituí-
da pela retórica; em outras palavras: a retórica é a ciência da
linguagem, mas uma ciência que constitui seu objeto, como
todas as demais.
Compreender o mundo como contingência leva a um
ceticismo, sem dúvida, mas não a um ceticismo niilista, des-
crente ou indiferente perante os acontecimentos: exatamente
porque a retórica material constitui a contingência, a respon-
sabilidade ética passa a ser indispensável no controle dessa
contingência.
A negação do conceito de causa e de toda forma de de-
terminismo torna crucial compreender o que se quer dizer
com uma compreensão retórica das ditas liberdade e vonta-
de como faculdades humanas. Se toda palavra é dotada de
porosidade, pois seu uso evolui na história dos contextos,
mais ainda substantivos abstratos como liberdade e vontade.
Como então concluir? Tentar rastear sua história pode ser
um bom caminho.
Nos primórdios dessa tradição ocidental, que vem da
Grécia antiga, a liberdade é compreendida como liberdade
política, aquela que pressupõe a igualdade entre os cidadãos
que dela usufruem. Para que essa igualdade se efetive, sem-
pre foi pré-requisito que os homens livres estivessem libera-
dos de suas necessidades vitais, que outros lhes provessem o
sustento com sua labuta e que houvesse um espaço público no
qual essa liberdade e essa igualdade se pudessem manifestar.
Por isso a persuasão é o meio etnometodológico mais impor-
tante na polis. A isso a retórica pouco tem a acrescentar.
A civilização romana vai trazer um novo fundamento
para a legitimidade do direito, consubstanciada na autoridade
do governo, que diminui a importância do topos de igualdade
UMA TEORIA RETÓRICA DA NORMA JURÍDICA E DO DIREITO SUBJETIVO
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entre os cidadãos. Os romanos conseguem organizar uma de-
sigualdade sem extinguir a faculdade de ação política nem o
correspondente espaço público, apelando à fundação da cida-
de e às normas legadas pelos antepassados, a crer na lição de
Hannah Arendt.282
O cristianismo retira o caráter público da liberdade e
assim a separa do direito e da política. Paulo de Tarso, cuja
importância para a civilização ocidental nem pode ser subes-
timada, identifica a liberdade com o livre arbítrio e com a in-
dependência em relação aos próprios desejos, erigindo-a em
uma faculdade do indivíduo isoladamente considerado, que
pode ser alcançada com prudência, resignação, ascese. Em di-
reção semelhante, Epiteto sugere uma liberdade possível até
para quem é escravo no mundo, um conceito diametralmente
oposto ao da Antiguidade clássica que findava. A liberdade
cristã passa a ser uma qualidade essencial de todo ser huma-
no, faz parte integrante de sua humanidade, não é um pressu-
posto da ação política. Para ter liberdade basta querer, pois a
vontade é essencialmente livre.
É interessante notar o reflexo deste conteúdo metafísico
– e não político – do conceito de liberdade na teoria jurídica.
Carlos Cossio tem a liberdade como postulado metafísico, um
prius ontológico para a existência da juridicidade; assim, por
mais impedido que esteja, o ser humano pode abrir ou fechar
os olhos, pensar nisso ou naquilo: “... a liberdade jurídica é,
para nós, a liberdade metafísica fenomenalizada, a liberdade
do querer”.283
Se a liberdade é um ponto central na construção retórica
do mundo real que aqui se vem expondo, aparece, ao lado do
problema da responsabilidade ética por essa contingência, a
questão do paternalismo na ética, ou seja, o debate sobre se
cabe constranger pessoas para o seu próprio bem, se a ordem
282 . ARENDT. Hannah. What is authority? In: ARENDT, Hannah. Between past and future – eight exer-
cises in political thought. New York: Penguin Books, 1980, p. 91-141.
283 . COSSIO, Carlos. La teoria egologica del derecho y el concepto jurídico de liberdad. Buenos Aires:
Abeledo Perrot, 1964, p. 403 s. e p. 643.

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