O problema do discernimento ético e de sua evolução diante da diferenciação do direito

AutorJoão Maurício Adeodato
Ocupação do AutorProfessor Titular da Faculdade de Direito do Recife
Páginas67-100
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CAPÍTULO SEGUNDO
O problema do discernimento ético e de sua
evolução diante da diferenciação do direito
2.1. Os abismos axiológicos e a infinita varia-
ção das preferências: monismos e dualismos. 2.2.
Pressuposto filosófico para enfrentá-los: a retóri-
ca estratégica como ação sobre a retórica material
e um conceito analítico de ética. 2.3. Estratégias
metodológicas para enfrentá-los: tolerância, isos-
tenia, ataraxia e a metáfora da intransponibilida-
de entre ser e dever ser. 2.4. Diferenciação entre
direito justo e direito posto: o esvaziamento de
conteúdo ético nos fundamentos prévios do direito
faz da legitimidade legitimação. 2.5. Diferencia-
ção e teses sobre a prevalência do direito subjetivo
ou do direito objetivo: tentativas do positivismo
para fundamentação externa dos direitos.
2.1. Os abismos axiológicos e a infinita variação das
preferências: monismos e dualismos
Este capítulo procura introduzir o segundo problema da
filosofia do direito destacado no presente livro, qual seja, se
há normas válidas em si mesmas, conteúdos axiológicos pré-
vios que garantam direitos subjetivos, ou se o direito positivo
JOÃO MAURÍCIO ADEODATO
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tem sob seu poder uma total disponibilidade ética, escolhas
sem limites superiores, e os direitos subjetivos só têm sentido
se garantidos pelo direito objetivo.
Essa questão, já anteriormente chamada de “abismo
axiológico”61, decorre das reações extremamente seletivas que
os humanos demonstram em relação aos estímulos do mundo
real, não apenas enquanto espécie animal, mas, sobretudo,
como indivíduos. Cada ser humano não apenas avalia esses
estímulos diferentemente, mas também os percebe de formas
únicas, pessoais e por vezes incompatíveis.
Defender a tese de que há direitos subjetivos acima
do direito positivo, inerentes à condição humana, enfrenta
o problema de que os seres humanos divergem sobre quais
seriam esses direitos e essas divergências são muitas vezes
inconciliá veis, envolvidas por interesses circunstanciais por
sua vez também incompatíveis. Defender a tese da total dis-
ponibilidade ética incondicionada nos fundamentos do direito
positivo, entendendo as escolhas originárias como dependen-
tes da luta por esses interesses históricos, por seu turno, traz
a admissão de quaisquer conteúdos éticos para o direito, pois
a história mostra que empalar criminosos e recolher pessoas
a campos de concentração são opções justas e devidas para
alguns grupos humanos. Diante das divergências sobre quais
são esses direitos subjetivos acima do direito positivo, os gru-
pos entram em conflito e a tese vencedora impõe-se coerciti-
vamente como direito positivo.
Os pensadores ocidentais ofereceram as mais diversas solu-
ções para essa divisão da filosofia e para a suposta emancipação
da ética, uma separação entre o mundo do ser e o do dever ser,
enunciados descritivos e prescritivos, ontologias e deontologias,
natureza e cultura, havendo aqueles que negam essa separação.
Pode-se tentar aqui resumir essas formas de tratar a
questão lançando mão de alguns tipos ideais para colocá-las
61 . ADEODATO, João Maurício. Ética e retórica – para uma teoria da dogmática jurídica. São Paulo:
Saraiva, 2012, p. 228 s.
UMA TEORIA RETÓRICA DA NORMA JURÍDICA E DO DIREITO SUBJETIVO
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em “ismos” ou grandes caixas conceituais, grosseiras, mas
inevitáveis.
Para aqueles que separam as esferas do ser e do dever
ser, como Kant e Kelsen, os quais são aqui chamados de dua-
listas, há uma esfera da axiologia, ou teoria dos valores, cujo
conhecimento demanda atitudes diferenciadas em compa-
ração com aquelas relativas ao mundo do ser. Os dualistas
dividem-se nas correntes objetivista e subjetivista. Para a
primeira, como o nome diz, os valores não estão ao alvedrio
da pessoa ou grupo social, mas há um critério superior a sua
vontade para determinar o correto e o incorreto, pois os ob-
jetos axiológicos trazem um valor próprio, independente do
arbítrio.
O objetivismo pode ser dito essencialista, cujos defenso-
res, como Max Scheler e Nicolai Hartmann, acreditam que os
valores são eternos e assim infensos a tempo e espaço, quer
dizer, não variam na história e são literalmente descobertos
ao longo da evolução cultural das nações. O objetivismo axio-
lógico é historicista quando defende a tese de que os valo-
res são objetivos, mas são criados pela civilização ao longo da
história, modificando-se no tempo e no espaço. Uma varian-
te dessa tendência, defendida por Miguel Reale, argumenta
que alguns valores mais importantes, ao serem incorporados
pela história, tornam-se definitivos, tornam-se “invariantes
axiológicas”.62
Para a concepção filosófica subjetivista, cada pessoa ou
grupo social atribui livremente valores ao mundo em redor,
numa atitude arbitrária que não pode ser racionalizada em
termos do que é correto ou incorreto. O valor existe, os se-
res humanos atribuem qualidades como justo, correto, bom
e belo, mas não há critério objetivo para separar valor de
desvalor, ficando ao bel-prazer de cada um o que considerar
valioso.63
62 . REALE, Miguel. Invariantes Axiológicas. Estudos Avançados n. 5 (13). Rio de Janeiro: 1991.
63 . ORTEGA Y GASSET, José. “¿Qué son los valores?”, in ORTEGA Y GASSET, José. Las etapas del
cristianismo al racionalismo y otros ensayos. Santiago: Pax, 1936.

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