Dos fatos juridicamente relevantes à concepção retórica dos eventos

AutorJoão Maurício Adeodato
Ocupação do AutorProfessor Titular da Faculdade de Direito do Recife
Páginas133-167
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CAPÍTULO QUARTO
Dos fatos juridicamente relevantes à concepção
retórica dos eventos
4.1. Da oposição entre racionalismo e empirismo
ao juízo sintético a priori. 4.2. Irracionalidade do
individual: linguagem jurídica e transformação
do evento em fato juridicamente relevante. 4.3.
A efetividade da conduta é método, que já é re-
lato, pois não há “acesso direto” a ela: o caminho
(όδóς). 4.4. A superação da dicotomia entre sujeito
e objeto está na constituição retórica do “mundo
dos métodos”.
4.1. Da oposição entre racionalismo e empirismo ao juízo
sintético a priori
Para os defensores da aqui denominada tradição platô-
nica, sobre o caráter ilusório da mudança observado por Par-
mênides, no sentido de que o conhecimento independe do
mundo dos eventos, cópia imperfeita do mundo das ideias,
só os juízos analíticos são a priori, pois o mundo das ideias
preexiste ao mundo real, tese depois continuada pelos es-
colásticos medievais sob a denominação de universalia ante
rem. Nessa tradição subjetivista também se podem inserir as
JOÃO MAURÍCIO ADEODATO
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ideias inatas de René Descartes.
Para os defensores da tradição objetivista do empirismo,
desde a mudança incessante do mundo sensível, de Heráclito,
até a antropologia do sujeito como folha de papel em branco
na qual a experiência imprime o saber, de John Locke, e o
sensualismo de Thomas Hobbes, o conhecimento vem de fora
para dentro e o sujeito não interfere no ser dos objetos. Mas
mesmo Locke e outros empiristas ingleses modernos são co-
locados por Bertrand Russell como subjetivistas, talvez com
menos coerência do que em Descartes, pois “A filosofia mo-
derna, no entanto, conservou, em sua maior parte, uma ten-
dência individualista e subjetiva.”119
Immanuel Kant pretende colocar o problema em termos
lógicos. Para isso coloca o enunciado (Satz) como uma espécie
de juízo (Urteil), criticando aqueles que definem um enuncia-
do como “um juízo que se expressa por meio de palavras”, isto
é, põem o enunciado como uma espécie de juízo por critérios
formais. Para Kant, as modalidades dos juízos permitem clas-
sificá-los em problemáticos, assertórios e apodíticos, segundo
acompanhem a consciência da simples possibilidade do juí-
zo, a consciência de sua efetividade ou a consciência de sua
necessidade, respectivamente. O juízo problemático é o juízo
propriamente dito, ao passo que o juízo assertório constitui o
enunciado. Aqui se trata de uma distinção de conteúdo e não
meramente formal; por isso o ser humano precisa julgar antes
de afirmar.120
Sua estratégia parte de duas distinções em voga no de-
bate da época. A primeira é que uma proposição ou enuncia-
do (Satz) pode ser classificada externamente, quanto à sua
relação com a experiência sensível, em a posteriori ou a priori;
e pode ser classificada internamente, quanto à relação entre
119 . RUSSELL, Bertrand. History of Western Philosophy – and its connections with political and social
circumstances from the earliest times to the present day. London: Routledge, 1993, p. 481: “Modern phi-
losophy, however, has retained, for the most part, an individualistic and subjective tendency.”
120 . KANT, Immanuel. Logik – ein Handbuch zu Vorlesungen, in WEISCHEDEL, Wilhelm (Hrsg.). KANT,
Immanuel. Schriften zur Metaphysik und Logik II. Werkausgabe – in zwölf Bände. Frankfurt a.M.: Suhr-
kamp, 1977. vol. VI, § 30 (p. A 168-170), p. 539-540.
UMA TEORIA RETÓRICA DA NORMA JURÍDICA E DO DIREITO SUBJETIVO
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seu sujeito e seu predicado, ou seu antecedente e seu conse-
quente, em sintética ou analítica.
Uma proposição é a posteriori se só pode ser confir-
mada em confronto com a experiência sensível, precisa
passar pelos órgãos dos sentidos e é fruto da percepção do
mundo dos fatos. Afirmar que “o nível das ondas do mar em
relação à praia sobe e desce diariamente” é uma proposição
a posteriori.
Uma proposição é a priori se independe da experiência,
tal como ocorre no conhecimento das matemáticas. O próprio
entendimento (Verstand) produz, testa e confirma a proposi-
ção a priori, que é sempre geral e necessária, genericamente
válida (allgemeingültig): “se A é menor do que B e B é menor
do que C, A é menor do que C” é um exemplo.
Uma proposição é chamada de sintética justamente
porque expressa uma síntese com a experiência, só pode
ser avaliada a partir de dados externos, isto é, a adequação
entre seus sujeito e predicado depende de confronto com o
mundo dos fenômenos. A água ferve a cem graus é uma pro-
posição sintética. A proposição sintética não tem o mesmo
grau de certeza da proposição analítica porque não é lo-
gicamente necessária, isto é, os fatos da experiência pode-
riam ocorrer de modo diferente do que efetivamente parecem
à observação humana, fazem parte de um mundo externo à
consciência, percebido empiricamente por meio dos órgãos
dos sentidos.
Uma proposição analítica é aquela na qual o predicado
que se diz já está contido na compreensão do próprio sujeito.
Tem caráter logicamente tautológico, pois o predicado apenas
explicita o que necessariamente compõe o sujeito, e nada re-
vela que não já estivesse nele. São as proposições das mate-
máticas, guiadas pelo princípio da não-contradição, as quais
levaram Platão a dizer que todo conhecimento é recordação
(anamnesis). A proposição “o raio é a metade do diâmetro” é
um exemplo.

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