O problema do conhecimento humano e seus três elementos irredutíveis

AutorJoão Maurício Adeodato
Ocupação do AutorProfessor Titular da Faculdade de Direito do Recife
Páginas35-66
35
CAPÍTULO PRIMEIRO
O problema do conhecimento humano e
seus três elementos irredutíveis
1.1. A problematização inicial: eventos como “coi-
sa em si”, significantes linguísticos e significados
ideais. 1.2. Pressuposto filosófico para enfrentá
-la: a retórica material como constitutiva da reali-
dade. 1.3. Estratégias metodológicas para enfren-
tá-la: 1.3.1. Os tipos ideais e a renúncia às teses da
correspondência e das definições omnicompreen-
sivas; 1.3.2. Etnometodologia: o saber do não saber
e o pensar por problemas; 1.3.3. Sísifo contra as
etiologias e escatologias na concepção da história.
1.4. Pressupostos sociológicos que vão propiciar as
estratégias da dogmática jurídica: 1.4.1. Digres-
são histórica para a centralização hierárquica do
Leviatã; 1.4.2. Privatização das demais ordens
sociais e a pulverização da ética; 1.4.3. Autorre-
ferência, formalização e procedimentalização são
as soluções apresentadas pela modernidade.
1.1. A problematização inicial: eventos como coisa em
si, significantes linguísticos e significados ideais
O embate entre os que relevam o evento e os que
JOÃO MAURÍCIO ADEODATO
36
enfatizam a ideia na teoria do conhecimento é mais antigo na
tradição ocidental, pois vem dos primeiros filósofos da nature-
za. Muito depois, só no século XX, em que pese a diversos pre-
cursores, é que aparecem a ênfase na linguagem e a separação
entre o significante e o significado linguísticos. Desde o início
da história da filosofia ocidental, porém, ficou clara a oposição
entre essas duas grandes tendências, que aqui são chamadas a
tradição racionalista de Parmênides e a tradição empirista de
Heráclito.
Para Parmênides o movimento é uma ilusão, daí que a
mudança não existe, é composta apenas de aparências, não
faz parte do ser.
Ao apartar abruptamente os sentidos e a aptidão de pensar
abstrações, portanto a razão, como se fossem duas facul-
dades completamente separadas, ele dilacerou o próprio
intelecto e encorajou àquela separação totalmente errônea
entre “espírito” e “corpo” que, especialmente desde Pla-
tão, pesa como uma maldição sobre a filosofia.29
Platão depois tomou essas abstrações como formas pri-
meiras e imutáveis e as chamou de “ideias”, Descartes falou
de ideias inatas e entre os dois filósofos muitos outros segui-
ram o fio da meada dessa tradição. A característica dos racio-
nalismos é que o conhecimento é imanente, está na própria
natureza racional humana. Na filosofia do direito, tal tendên-
cia desemboca no pensamento de autores que acreditam que
há critérios corretos (justos) por si mesmos e que conduzem a
decisões corretas nos casos concretos.30
29 . NIETZSCHE, Friedrich. Die Philosophie im tragischen Zeitalter der Griechen, in NIETZSCHE,
Friedrich. Nachgelassene Schriften 1870-1873, in COLLI, Giorgio – MONTINARI, Mazzino (Hrsg.):
Friedrich Nietzsche, Kritische Studienausgabe – in fünfzehn Bände, vol. 1. Berlin: Walter de Gruyter,
1988, § 10, p. 843: „dadurch da er die Sinne und die Befähigung Abstraktionen zu denken, also die Ver-
nunft jäh auseinander ri, als ob es zwei durchaus getrennte Vermögen seien, hat er den Intellekt selbst
zerstrümmert und zu jener gänzlich irrthümlichen Scheidung von ‚Geist’ und ‚Körper’ aufgemuntert,
die, besonders seit Plato, wie ein Fluch auf der Philosophie liegt.”
30 . STRECK, Lenio. Verdade e consenso. Constituição, hermenêutica e teorias discursivas – da possibi-
lidade à necessidade de respostas corretas em direito. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, 3. ed. (revista,
ampliada e com posfácio). ALEXY, Robert. Theorie der juristischen Argumentation. Frankfurt a. M.:
Suhrkamp, 1983. DWORKIN, Ronald. Taking rights seriously. London: Duckworth, 1994.
UMA TEORIA RETÓRICA DA NORMA JURÍDICA E DO DIREITO SUBJETIVO
37
Para Heráclito, por outro lado, o conhecimento deve se
concentrar na mudança e é a permanência que constitui uma
ilusão, pois ninguém pode tomar banho nas águas do mesmo
rio, “tudo passa, nada permanece” (πάντα ῥεῖ οὔδεν μένει – pánta rheĩ
oúden ménei – na síntese tardia de seu pensamento). Heráclito
chega então a seus dois postulados, suas duas negações básicas:
A princípio ele negou a dualidade de mundos inteiramen-
te diversos, que Anaximandro havia sido forçado a admi-
tir; não separava mais um mundo físico de um metafísico,
um reino das qualidades determinadas de um reino da
indeterminação indefinível. Agora, depois desse primeiro
passo, não podia mais ser impedido de uma audácia muito
maior da negação: negou completamente o ser. (...) Mais
alto do que Anaximandro, Heráclito proclamou: “Não vejo
nada além do vir-a-ser. Não vos deixeis enganar! É vossa
curta vista, não a essência das coisas, que vos faz acreditar
ver terra firme em alguma parte no mar do vir-a-ser e do
perecer. Usais nomes das coisas como se elas tivessem uma
duração rígida: mas nem mesmo a corrente em que entrais
pela segunda vez é a mesma que da primeira vez.”31
A antropologia carente exposta na introdução tem
acompanhado, no mais das vezes, as concepções empíricas
e não é à toa que ceticismo e empirismo aparecem por vezes
juntos na organização de livros e enciclopédias de filosofia.32
A ênfase sobre a constante mutabilidade dos eventos leva a
uma maior desconfiança da razão como instrumento ade-
quado ao conhecimento. Esta a linha que vai desembocar no
31 . NIETZSCHE, Friedrich. Die Philosophie im tragischen Zeitalter der Griechen, in NIETZSCHE,
Friedrich. Nachgelassene Schriften 1870-1873, in COLLI, Giorgio – MONTINARI, Mazzino (Hrsg.):
Friedrich Nietzsche, Kritische Studienausgabe – in fünfzehn Bände, vol. 1. Berlin: Walter de Gruyter,
1988, § 5º, p. 823-823: „Einmal leugnet er die Zweiheit ganz diverser Welten, zu deren Annahme Anaxi-
mander gedrängt worden war; er schied nicht mehr eine physische Welt von einer metaphysischen, ein
Reich der bestimmten Qualitäten von einem Reich der undefinirbaren Unbestimmtheit von einander
ab. Jetzt, nach diesem ersten Schritte, konnte er auch nicht mehr von einer weit gröeren Kühnheit
des Verneinens zurückgehalten werden: er leugnete überhaupt das Sein. (...) Lauter als Anaximander
rief Heraklit es aus: ‚Ich sehe nichts als Werden. Lat euch nicht täuschen! In eurem kurzen Blick liegt
es, nicht im Wesen der Dinge, wenn ihr irgendwo festes Land im Meere des Werdens und Vergehens zu
sehen glaubt. Ihr gebraucht Namen der Dinge als ob sie eine starre Dauer hätten: aber selbst der Strom,
in den ihr zum zweiten Male steigt, ist nicht derselbe als bei dem ersten Male.’”
32 . Philosophie von Platon bis Nietzsche (CD Rom). Ausgewählt und eingeleitet von Frank-Peter Han-
sen. Berlin: Digitale Bibliothek, 1998.

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT