A exigibilidade da promessa de doação

AutorMaria Celina Bodin de Moraes
Ocupação do AutorProfessora Titular de Direito Civil da Faculdade de Direito da UERJ e Professora Associada do Departamento de Direito da PUC-Rio
Páginas633-654
A exigibilidade da promessa de doação1
Maria Celina Bodin de Moraes2
Sumário: Introdução; – 1. O valor atual do animus donandi; –
2. A causa do contrato de doação; – 3. Promessa de doação no
âmbito do direito de família; – 4. Exigibilidade da promessa de
doação; – 5. Conclusão.
Introdução
A doação, contrato previsto nos arts. 538 e seguintes do Código
Civil, representa um dos negócios jurídicos mais frequentemente
realizados; todavia, enseja ainda controvérsias jurídicas árduas, que
continuam a desafiar a doutrina e a jurisprudência nos ordenamen-
tos de tradição romano-germânica.3 Um desses problemas diz res-
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1 Uma versão anterior, intitulada “Notas sobre a promessa de doação”, foi
publicada na Civilistica.com. Revista eletrônica de direito civil. Rio de Janeiro,
a. 2, n. 3, jul-set/2013.
2 Professora Titular de Direito Civil da Faculdade de Direito da UERJ e
Professora Associada do Departamento de Direito da PUC-Rio.
3 Sobre as dificuldades que envolvem o contrato de doação, v. a sagaz obser-
vação de Biondo Biondi: “Praticamente todos compreendem que coisa significa
dar ou receber uma doação, enquanto juristas e legisladores permanecem perple-
xos. Esta incerteza ocorre em todos os institutos jurídicos, quando as relações
humanas entram na órbita do Direito para tornarem-se relações jurídicas, já que
a intuição comum deve se traduzir em uma formulação precisa, mas talvez em
nenhum outro instituto se note tanta incerteza e tanta discrepância entre a sim-
plicidade da noção prática e a difícil formulação jurídica”. (In Trattato di diritto
civile italiano, diretto da F. Vassali. Torino: Utet, 1961, pp. 84-85). Para que se
dê o devido valor à afirmação, cabe mencionar que a doutrina italiana se inclui
entre as que mais se destacaram, tanto em qualidade como em quantidade, no
estudo da doação.
peito à possibilidade de sua promessa. Será admissível a promessa
de doação?
A maior parte dos juristas brasileiros respondia negativamente
à questão, com fundamento na elaboração sintetizada por Agosti-
nho Alvim, para quem “a persistência do animus donandi é dogma
fundamental em matéria de doação”, entendendo-se, em conse-
quência, ser impossível que se “obrigue” alguém a doar.4 Segundo
este raciocínio, o requisito da vontade livre, no âmbito do contrato
de doação, alcança uma conotação tão fundamental que a ausência
de sua manifestação, no momento da contratação definitiva, impe-
de a configuração jurídica do preliminar.
O problema, contudo, merece ser reexaminado. Os nossos são
tempos em que a autonomia da vontade e a concepção liberalista
cederam a posição de centralidade no direito civil, dando lugar a
princípios tais como a boa-fé, a confiança e a solidariedade, quer
em virtude da aplicação direta da Constituição às relações inter-
subjetivas,5 quer pela renovação da disciplina codicista. Será preci-
so verificar, então, se, à luz desses paradigmas, se a promessa de
doar deve continuar a ser inadmitida, por configurar verdadeira e
injustificável “doação coativa”,6 ou se, neste novo sistema, será ra-
zoável admiti-la.
Cumpre lembrar que mesmo no âmbito do direito civil ante-
rior, parte da doutrina, embora minoritária, defendia a possibilida-
de jurídica da promessa. Assim, Pontes de Miranda sustentava que
“se houve pacto de donando, e não doação, e o outorgante não doa,
isto é, não conclui o contrato de doação, tem o outorgado a preten-
são ao cumprimento”,7 salientando caber ação de indenização pelo
descumprimento do contrato preliminar. Também favorável ao
preliminar de doação manifestava-se, de maneira ainda mais incisi-
va, Washington de Barros Monteiro, para quem tal promessa “não
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4 Agostinho Alvim. Da doação. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 1980, p. 42.
5 Para a proposta de leitura civil-constitucional dos institutos jurídicos civilis-
tas, v., por todos, Pietro Perlingieri. Perfis do direito civil, 3. ed. Rio de Janeiro:
Renovar, 2007, passim.
6 A expressão é de Caio Mário da Silva Pereira. Instituições de direito civil. v.
III. 22. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2018, p. 233.
7 Tratado de direito privado, t. XLVI. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012,
p. 338.

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