Herança digital: quem tem legitimidade para ficar com o conteúdo digital do falecido?

AutorKarina Nunes Fritz
Páginas201-219
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HERANÇA DIGITAL:
QUEM TEM LEGITIMIDADE PARA FICAR COM
O CONTEÚDO DIGITAL DO FALECIDO?
Karina Nunes Fritz
Sumário: 1 Introdução. 2 A teoria da intransmissibilidade. 3 Críticas à teoria da intransmissi-
bilidade. 4 A teoria da transmissibilidade do conteúdo digital. 5 O estado da arte no Brasil e
em alguns países europeus. 6 Considerações nais. Referências.
1. INTRODUÇÃO
No mundo globalizado e interconectado da internet, ninguém passa despercebido.
Todos deixam rastros no mundo digital, os quais são difíceis de apagar. Na sociedade digital,
na qual as pessoas estão conectadas em uma intrincada rede mundial de comunicação,
parece cada vez mais difícil viver sem e-mails, sem fazer compras e negócios online, sem se
comunicar via WhatsApp, FaceTime ou Skype, sem assistir a f‌ilmes e séries da Netf‌lix, sem
baixar músicas no Spotify ou sem postar fotos e textos no Instagram, Facebook ou Twitter.
Aliás, na era digital, os psicanalistas alertam para o risco do fenômeno: “posto, logo
existo” – parafraseando Descartes que, como ninguém, sintetizou em poucas palavras
a essência racional do homem. Acentuam, ainda, o grande paradoxo no qual está preso
o homem contemporâneo, que, de um lado, sente uma necessidade brutal de se expor
nas redes sociais e, de outro, clama – e exige do Estado-Juiz – a tutela de sua privacidade
e intimidade.
A par das contradições humanas, fato é que em todas essas atividades banais da
vida cotidiana hodierna, o usuário deixa suas pegadas no mundo digital, seja inserin-
do diretamente dados e conteúdos na rede, seja simplesmente acessando ou curtindo
conteúdos digitais. E todas essas inovações tecnológicas causam, em maior ou menor
medida, impacto direto sobre o direito.
Uma das questões centrais que tem agitado o direito sucessório da era digital é saber
com quem devem f‌icar os “bens” digitais, amealhados em vida, após a morte do titular.
Quanto aos bens e direitos acumulados no mundo analógico, não há dúvidas: eles são
transmitidos automaticamente aos herdeiros no momento da morte do titular. Essa é a
regra geral prevista no art. 1.784 CC2002, onde se encontra positivado o milenar prin-
cípio da sucessão universal.
Contudo, quando se tratam de bens e direitos acumulados no mundo virtual, há con-
trovérsia. A grande maioria dos doutrinadores ainda não se posicionou sobre o assunto.
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KARINA NUNES FRITZ
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Os poucos que tratam do tema manifestam-se massivamente contra a transmissibilidade
aos herdeiros da chamada herança digital, terminologia que sintetiza e exprime todo o
conteúdo criado e/ou armazenado na rede por uma pessoa.
Abrindo divergência, uma segunda corrente, majoritária no direito alemão, defende
como regra a transmissibilidade de todo o conteúdo digital, salvo disposição expressa do
titular em sentido contrário. Essa corrente ganhou força na Europa após o julgamento do
leading case, pela mais alta corte infraconstitucional alemã, o Bundesgerichtshof (BGH),
em 2018, quando, então, a contracorrente penetrou no Brasil1.
O tema ainda é novo, existindo poucas decisões judiciais a respeito2. Falta evi-
dentemente norma legal expressa a respeito. Alguns projetos de lei (PL 4.847/2012, PL
4.099/2012, PL 7.742/2017, PL 8.562/2017) favoráveis à transmissibilidade da herança
digital foram arquivados, tramitando atualmente o PL 6.468/2019, que pretende in-
troduzir o Parágrafo Único ao art. 1.788 do Código Civil, que passaria a ter a seguinte
redação: “Parágrafo único. Serão transmitidos aos herdeiros todos os conteúdos de contas
ou arquivos digitais de titularidade do autor da herança.”
O Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB) produziu dois pareceres sobre os pro-
jetos de lei de 2012: o primeiro, de abril de 2017, elaborado por Pedro Teixeira Pinos
Greco, membro da Comissão de Direito das Famílias e das Sucessões, defendendo a
constitucionalidade dos mencionados PL 4.099 e 4.847, e o segundo, de autoria de Pablo
Malheiros da Cunha Frota, membro da Comissão de Direito Civil, datado de dezembro
do mesmo ano, manifestando-se pela inconstitucionalidade da reforma legislativa por
violação à dignidade humana e privacidade do de cujus. Dessa forma, a situação atual é
de insegurança jurídica.
O objetivo do presente ensaio é examinar criticamente os argumentos de ambas as
correntes, bem como os contratos de utilização de plataformas digitais, os quais viabi-
lizam a criação e armazenamento na nuvem dos dados digitais, a f‌im de tomar posição
sobre o assunto.
2. A TEORIA DA INTRANSMISSIBILIDADE
A teoria da intransmissibilidade da herança digital, em apertada síntese, parte da
ideia de que nem todo o conteúdo digital acumulado pelo usuário em plataformas digi-
tais é automaticamente transmitido aos herdeiros com a morte do titular3. Necessário
primeiro, argumenta-se, separar as “situações jurídicas patrimoniais” das chamadas
1. Permita-se remeter aqui a NUNES FRITZ, Karina e SCHERTEL MENDES, Laura. Case Report: corte alemã re-
conhece a transmissibilidade da herança digital. Revista de Direito da Responsabilidade, ano 1, 2019, p. 525-555.
Disponível no site: www.revistadireitoresponsabilidade.pt.
2. Conf‌ira-se: TJMS, Processo n. 0001007-27.2013.8.12.0110, 1a. Vara do Juizado Especial Central, juíza Vania de
Paula Arantes, j. 19.03.2013 e TJMG, Processo n. 00023375-92.2017.8.13.050, juiz Manoel Jorge de Matos, ambos
comentados adiante.
3. Um dos pioneiros na sistematização da teoria foi Thomas Hoeren, Professor da Universidade de Münster, na Ale-
manha, que em 2005, debruçou-se sobre a temática da até então pouco discutida herança digital. Cf. HOEREN,
Thomas. Der Tod und das Internet – Rechtliche Fragen zur Verwendung von E-Mail- und www-Accounts nach
dem Tode des Inhabers. NJW 2005, p. 2113-2117.
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