Trair e coçar, é só começar: breve análise acerca da responsabilidade civil nos casos de infidelidade virtual

AutorHelen Cristina Leite de Lima Orleans
Páginas97-120
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TRAIR E COÇAR, É SÓ COMEÇAR:1
BREVE ANÁLISE ACERCA DA
RESPONSABILIDADE CIVIL NOS
CASOS DE INFIDELIDADE VIRTUAL
Helen Cristina Leite de Lima Orleans
Sumário: 1. Introdução. 2. A responsabilidade civil e os chamados “novos danos”. 3. A violação
à dignidade da pessoa humana como fundamento para a caracterização dos danos morais. 4.
A responsabilidade civil nas relações entre cônjuges e companheiros. 4.1. Responsabilidade
civil em razão do descumprimento dos deveres conjugais. 4.2. Responsabilidade civil com
fundamento na violação à dignidade da pessoa humana. 5. Hipóteses de responsabilização
e a internet. 6. Considerações nais. Referências.
1. INTRODUÇÃO
“Trair e coçar é só começar”. Essa breve expressão, conhecida por dar título a uma
famosa peça de teatro em cartaz desde a década de 1980, se torna uma realidade ainda
mais patente na era da informática e da internet.
É lugar comum a af‌irmação de que a internet revolucionou a vida das pessoas em
todo mundo, nos mais diversos aspectos. Nesse âmbito, uma das áreas diretamente
afetadas pela maior facilidade de comunicação entre as pessoas – por não haver mais
barreiras entre os Estados, países ou mesmo continentes – é, inegavelmente, a família.
Como af‌irma Marilene Silveira Guimarães acerca das relações virtuais:
“Muitas são as causas que motivam os relacionamentos virtuais. Uns navegam na Internet para aten-
der a uma necessidade natural de conhecer pessoas, para brincar, para fazer descobertas, repetindo
o que acontecia antigamente nos relacionamentos por carta, que iniciavam por uma amizade sem
compromisso. Outros usam os relacionamentos virtuais para vencer a solidão, para vencer o tédio do
cotidiano, para preencher carências afetivas. Enquanto uns buscam os relacionamentos virtuais para
fugir da relação pouco graticante que vivem na realidade, outros também usam a sedução exercida
no espaço virtual para melhorar a relação com seus parceiros reais”2.
Nessa linha, são inúmeros os casos noticiados por parentes e amigos – e até mesmo
pela própria imprensa – de relacionamentos que surgem através da rede mundial de
1. O título é uma referência à peça teatral, de Marcos Caruso e Jandira Martini, e f‌ilme de mesmo nome.
2. GUIMARÃES, Marilene Silveira. Adultério virtual / inf‌idelidade virtual. In: ZIMERMAN, David; COLTRO, Antônio
Carlos Mathias (Orgs.). Aspectos psicológicos na prática jurídica. Campinas: Millennium, 2010. p. 511-512.
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HELEN CRISTINA LEITE DE LIMA ORLEANS
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computadores. Tal fato se justif‌ica pela característica “sem fronteiras” da internet, que
termina por aproximar pessoas que, de outra forma, dif‌icilmente se encontrariam. O
recurso à internet, portanto, num tempo em que as relações “reais” tornam-se cada vez
mais difíceis, pode culminar em um “felizes para sempre” virtual.
Por outro lado, da mesma forma que a internet aproxima casais e pode culminar
em relacionamentos duradouros no mundo real, muitas vezes sua utilização serve a f‌im
diametralmente oposto: as chamadas traições virtuais ou, como será adotado nesse artigo,
inf‌idelidade virtual3. Existem, inclusive, sites especializados que pretendem facilitar esse
tipo de prática, gerando muita polêmica, como, por exemplo, as redes sociais Second Love4
e Ashley Madison5, ambas vinculadas a sites estrangeiros atuando hoje também no Brasil.
Contudo, antes mesmo da existência desses recursos mais específ‌icos, era comum a
utilização das chamadas “salas de bate-papo” dos portais dos provedores de internet para
encontros virtuais e, até mesmo, para a prática de “sexo virtual”. Apenas exemplif‌icando,
na página do provedor de conteúdo Uol6, existem atualmente oitenta salas específ‌icas
destinadas a “sexo virtual” e outras sessenta vinculadas ao tema “imagens eróticas”.
Assim, a inf‌idelidade virtual, plenamente possível através de redes sociais mais
gerais, como Facebook7 , possui ampla forma de difusão através das inúmeras salas de
chat espalhadas pela rede mundial de computadores, além das redes sociais específ‌icas,
todas observando um requisito essencial: o sigilo. Assim, pelo menos em tese, os rela-
cionamentos ditos “of‌iciais”, ou seja, do “mundo real”, estariam protegidos em face da
inf‌idelidade virtual.
“Pessoas casadas ou que vivem em união estável, em face das mais variadas razões,
(...), por acreditarem estarem livres, por exemplo, de um f‌lagrante adultério, encontram
3. Como noticiado pelo Globo Repórter, os casos de inf‌idelidade virtual são cada vez mais comuns, citando como
exemplo a seguinte situação: “A mulher, de 60 anos, estava casada há 30, quando o marido começou a mudar.
‘Ele foi f‌icando um homem seco, um homem estranho comigo. Quando eu questionava sobre a nossa vida, ele
falava que não tinha mais tesão e não tinha mais vontade’, lembra. Paralelamente, no mundo virtual o marido era
só sentimentos com outra. Algo que ela só veio a saber depois de mais de oito anos de um caso dele na internet.
‘É muito difícil, muito complicado para a gente desconhecer a pessoa com quem você vive, como o meu caso. Eu
vivia casada há mais de 30 anos, quase 40. Então, você desconhece aquela pessoa, quando você lê todas aquelas
coisas que você não imagina que a pessoa faria com outra pessoa’, diz a mulher. Hoje, ela tem coragem de contar
como f‌icou sabendo de tudo o que aconteceu. Foi depois de descobrir por acaso um endereço eletrônico secreto
do marido. ‘Quando eu vi todos os e-mails, eu f‌iquei transtornada, mas comecei a imprimi-los rapidamente.
Consegui imprimir mais de 50, porque tinha mais de 300 e-mails. Eram anos e anos’, revela. Ao acessar os textos,
leu os detalhes da traição que acontecia dentro da sua própria casa. Ela lê trechos das mensagens: ‘meu pedacinho
de perdição, f‌iquei encabulada. Como você está? Pelo jeito, gostou das minhas fotos. Eu adoro as suas, como
elas são especiais’. (...) Depois da descoberta, o marido transtornado tentou reatar os laços da vida real. Jurou
arrependimento e mandou para a própria mulher inúmeros pedidos de perdão por e-mail. O que é uma traição?
Sexo, troca de carinho com outra pessoa ou a quebra de um acordo que as pessoas fazem quando se casam? As
opiniões divergem, principalmente entre homens e mulheres. Mas para quem já fez a descoberta dolorosa, não
há dúvida: ‘machuca e machuca muito, porque mesmo sendo virtual assume um caráter, às vezes, maior do que
o real, porque o fato de ser virtual parece que a pessoa se abre mais, se coloca mais, se coloca sem barreiras’, diz a
mulher traída”. Disponível em: http://g1.globo.com/globoreporter/0,,MUL1250860-16619,00.html. Acesso em:
17 jan. 2020.
4. Disponível em: < http://www.secondlove.com.br >. Acesso em: 17 jan. 2020.
5. Disponível em: < http://www.ashleymadison.com >. Acesso em: 17 jan. 2020.
6. Disponível em: < http://batepapo.uol.com.br >. Acesso em: 17 jan. 2020.
7. Disponível em: < http://www.facebook.com.br >. Acesso em: 17 jan. 2020.
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