'Herança Digital': reflexões sobre o presente e prospectos para o futuro

AutorAna Carolina Brochado Teixeira e Cintia Burille
Ocupação do AutorDoutora em Direito Civil pela UERJ. Mestre em Direito Privado pela PUC Minas. Professora do Centro Universitário UNA. Coordenadora editorial da Revista Brasileira de Direito Civil ? RBDCivil. Advogada. / Mestra em Direito pela Fundação Escola Superior do Ministério Público (FMP/RS). Especialista em Direito de Família e Sucessões pela FMP/RS. ...
Páginas11-44
“HERANÇA DIGITAL”: REFLEXÕES SOBRE O
PRESENTE E PROSPECTOS PARA O FUTURO
Ana Carolina Brochado Teixeira*1
Cintia Burille**2
Sumário: Introdução – 1. Bens digitais: patrimoniais, existenciais e híbridos – 2. Bens digitais
hereditáveis e inereditáveis: correntes doutrinárias – 3. Nem tanto ao céu nem tanto à terra: a
escolha pelo caminho da tutela à vida privada do de cujus e de seus terceiros interlocutores – 4.
Planejamento sucessório da “herança digital” – 5. Conclusão – Referências.
INTRODUÇÃO
A “herança digital” é uma temática que entrou, denitivamente, para a agenda
de estudos no âmbito do Direito. A p andemia da Covid-19 acelerou a percepção
de que a vida não tem apenas uma dimensão oine, mas também, tem inegável
projeção no âmbito virtual. Também incrementou a aquisição de ativos digitais e a
vida humana global se tornou ainda mais online. O isolamento e o distanciamento
social aceleraram a digitalização da vida: serviços bancários online, compras por
aplicativos, e-commerce, reuniões online, ensino virtual foram alguns exemplos
de situações que se tornaram corriqueiras na vida pandêmica. Com isso, o acervo
digital cresceu e avolumou-se.
Ao lado disso, também não se pode perder de vista a nitude humana. Se os
debates sobre “herança digital” já eram importantes antes da pandemia, com ela,
tomou o centro dos debates, em razão do expressivo número de mortes advindas
do coronavírus. O aceleramento do número de mortes e o crescimento dos ativos
digitais geraram uma intersecção que tornou inevitável a busca pela resposta à
pergunta: para quem cam todos esses ativos digitais após a morte do usuário?
* Doutora em Direito Civil pela UERJ. Mestre em Direito Privado pela PUC Minas. Professora do Centro
Universitário UNA. Coordenadora editorial da Revista Brasileira de Direito Civil – RBDCivil. Advogada.
** Mestra em Direito pela Fundação Escola Superior do Ministério Público (FMP/RS). Especialista em
Direito de Família e Sucessões pela FMP/RS. Especialista em Direito Civil e Processual Civil pela Uni-
Ritter. Professora de cursos de pós-graduação em Direito de Família e Sucessões. Advogada. https://
www.burillemarquesdias.com.br / cintia@burillemarquesdias.com.br.
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ANA CAROLINA BROCHADO TEIXEIRA E CINTIA BURILLE
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Como o tema é novo, não há, por ora, lei expressa que trate da matéria. No
entanto, é importante saber se, ainda assim, não é possível uma compreensão
sistemática do ordenamento que regule o assunto de forma satisfatória.
O objetivo desse artigo é traçar um panorama crítico a respeito do assunto,
partindo da compreensão do que são bens digitais, da investigação de instrumen-
tos que suportam a transmissão do acervo hereditário no ordenamento jurídico,
para, por m, avaliar a importância do planejamento sucessório no âmbito da
“herança digital”.
1. BENS DIGITAIS: PATRIMONIAIS, EXISTENCIAIS E HÍBRIDOS
No âmbito da tecnologia da informação e comunicação, destaca-se a tecno-
logia digital, que busca digitalizar informações, isto é, traduzi-las em números.
Informações, sons, imagens, tudo pode ser digitalizado, reduzido a códigos
binários. Esses “números codicados em binário podem ser objeto de cálculos
aritméticos e lógicos executados por circuitos eletrônicos especializados”.1 Assim,
o real pode tornar-se digital, para ser transmitido, armazenado, modicado e,
eventualmente, traduzido novamente em real: textos, imagens, sons, ações de
um robô etc. A tecnologia digital tem crescido e ganhado tanto espaço porque “a
digitalização permite um tipo de tratamento de informações ecaz e complexo,
impossível de ser executado por outras vias”.2 Essas informações podem ser ar-
mazenadas no dispositivo do usuário ou em servidores externos, como acontece
com o armazenamento em nuvem.3
O desenvolvimento da tecnologia caminha em passos largos e vem inuen-
ciando nos mais diversos aspectos da vida humana, principalmente após a internet,
que revolucionou o quotidiano das pessoas, inserindo novos modos de relacionar
e comportamentos4 e, por consequência, novos bens jurídicos, isto é, objeto de
situações jurídicas subjetivas, termo de referência de todos os comportamentos
que se inserem em relações jurídicas.5 Tem-se, no entanto, paradigmas antigos
para tratar novos temas, um direito analógico que pretende dar conta dos novos
desaos do mundo virtual.
1. LEVY, Pierre. Cibercultura. Trad. COSTA, Carlos Irineu da. São Paulo: Editora 34, 2010, p. 54.
2. LEVY, Pierre. Cibercultura. Trad. COSTA, Carlos Irineu da. São Paulo: Editora 34, 2010, p. 54.
3. FACHIN, Zulmar Antônio; PINHEIRO, Valter Giuliano Mossini. Bens digitais: análise da possibilidade
de tutela jurídica no Direito brasileiro. In: DIAS, Feliciano Alcides; TAVARES NETO, José Querino;
ASSAFIM, João Marcelo de Lima (Coord.). Direito, inovação, propriedade intelectual e concorrência.
Florianópolis: CONPEDI, 2018, p. 296.
4. Para uma reexão sobre os bens digitais, seja consentido remeter ao nosso KONDER, Carlos Nelson de
Paula; TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado. O enquadramento dos bens digitais sob o perl funcional
das situações jurídicas. In: TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; LEAL, Livia Teixeira. (C oord.). Herança
digital: controvérsias e alternativas. Indaiatuba: Foco, 2021, p. 21-40.
5. PERLINGIERI, Pietro. Manuale di diritto civile. 4. ed. Napoli: ESI, 2005, p. 74.
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“HERANÇA dIGITAl”: REFlEXÕES SobRE o PRESENTE E PRoSPECToS PARA o FUTURo
A tecnologia digital trouxe novas formas de se estabelecer relações e de
viver, criando necessidades pessoais e oportunidades de mercado, que consubs-
tanciam novos bens da vida. Com isso, criam-se centros de interesse que deverão
ser disciplinados pelo Direito, a partir de novos paradigmas, interpretando-se
essas relações jurídicas a partir da visão funcional, ou seja, os novos fenômenos
requerem a busca pela função dos bens nas novas situações jurídicas nas quais
eles estão inseridos no plano da realidade.6
Os bens digitais têm evidenciado que o direito de propriedade também está
em modicação. Muitas das relações das pessoas com tais bens não são mais de
titularidade, mas de acesso.7 São inúmeros os exemplos dessa mudança: serviços
de streaming ligados a lmes, músicas, locação de imóveis de curta temporada,
transporte em cidades, milhas aéreas etc.
Bruno Zampier dene bens digitais como bens incorpóreos “progressi-
vamente inseridos na Internet por um usuário, consistindo em informações
de caráter pessoal que lhe trazem alguma utilidade, tenham ou não conteúdo
econômico”.8 Por esse motivo, é primordial que se entenda o papel, a função do
bem na especíca situação jurídica em que ele se insere: “o valor e tratamento
normativo de um bem refere-se à função que ele desempenha em dada situação
jurídica subjetiva”.9
Assim, para se vericar o tratamento a ser dado ao bem digital, importa se
vericar se ele desempenha função patrimonial ou existencial naquela referida
situação. Por exemplo: um perl de rede social pode ser existencial – para registro
de momentos da vida do usuário – ou híbrido, se ele for monetizado. Por isso, é
importante pensar os bens digitais sob 3 segmentos: situações jurídicas patrimo-
niais, existenciais e dúplices.10
Os bens digitais patrimoniais desempenham função econômica, conversível
em pecúnia, com escopo nanceiro e lucrativo, razão pela qual atrai a tutela do
art. 170 da Constituição Federal, aplicando-se os princípios do Direito Obriga-
6. “Para cada bem, portanto, denido com sua especíca destinação, nalidade e função, o ordenamento
reserva regime jurídico que o singulariza” (TEPEDINO, Gustavo; OLIVA, Milena Donato. Fundamentos
do direito civil: teoria geral do direito civil. Rio de Janeiro: Forense, 2020. p. 181).
7. GUILHERMINO, Everilda Brandão. Direito de acesso e herança digital. In: TEIXEIRA, Ana Carolina
Brochado; LEAL, Livia Teixeira. (Coord.). Herança digital: controvérsias e alternativas. Indaiatuba:
Foco, 2021, p. 95-104.
8. ZAMPIER, Bruno. Bens digitais. 2. ed. Indaiatuba: Foco, 2021, p. 78.
9. KONDER, Carlos Nelson de Paula; TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado. O enquadramento dos bens
digitais sob o perl funcional das situações jurídicas. In: TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; LEAL,
Livia Teixeira. (Coord.). Herança digital: controvérsias e alternativas. Indaiatuba: Foco, 2021, p. 31.
10. KONDER, Carlos Nelson; TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado. Situações jurídicas dúplices: Contro-
vérsias na nebulosa fronteira entre patrimonialidade e extrapatrimonialidade. In: FACHIN, Luiz Edson;
TEPEDINO, Gustavo (Org.). Diálogos sobre direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2012, v. III, p. 3-24.
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