Liquidação da Sentença

AutorManoel Antonio Teixeira Filho
Ocupação do AutorAdvogado. Juiz aposentado do TRT da 9.ª Região
Páginas264-301

Page 264

1. Nótula introdutória

O Código Civil anterior, em seu art. 1.533, dizia ser líquida a obrigação que se apresentasse certa quanto à sua existência, e determinada no tocante ao seu objeto. Ainda que o Código atual não tenha reproduzido o aludido conceito, este deve ser preservado. A propósito, como vimos no Capítulo anterior, o próprio CPC faz menção aos requisitos de certeza e determinação da obrigação contida no título executivo, para que este possua eficácia executiva.

Em um plano ideal, as obrigações consubstanciadas em títulos executivos judiciais deveriam ser sempre líquidas, ou seja, conter todos os elementos necessários à sua imediata execução, porquanto a certeza do credor, em relação ao montante do seu crédito — e, em contrapartida, a do devedor, quanto ao total da dívida —, propiciaria uma execução rápida, livre, e boa parte dos incidentes que a entravam, dentre os quais se incluem os respeitantes à determinação do quantum debeatur (a Lei n. 9.957/2000, que acrescentou as letras A a H ao art. 852 da CLT, para instituir o procedimento sumaríssimo, exige que nas ações sujeitas a esse procedimento o valor dos pedidos conste da inicial). Não estamos afirmando, com isso, que há, na prática, sentenças que se revelam incertas quanto à existência do crédito, pois semelhante anomalia corresponderia à não sentença, ao nihil jurisdicional, sabendo-se que, em nosso sistema de processo, o provimento emitido pelo juiz deve ser sempre certo, mesmo quando resolva relação jurídica condicional (CPC, art. 492, parágrafo único). Nula será, conseguintemente, a sentença que subordinar o acolhimento dos pedidos formulados pelo autor à eventualidade de ser constatada, na fase de liquidação, a existência do direito por ele alegado.

Com o advento do estatuto processual civil de 1973 deixou de haver lugar, em nosso meio, para as sentenças incompletas, ou condicionais, a que Valentin Carrion dedicara proveitosa monografia (As sentenças incompletas. Universidad de Madrid, 1971).

A incerteza, pois, que se possa irradiar da sentença exequenda liga-se exclusivamente ao montante, ao quantum da dívida, situação que exigirá a prática de certos atos antecedentes à execução propriamente dita — e dela preparatórios —, destinados à quantificação do valor a ser exigido ao devedor. A esse conjunto de atos dá-se o nome de liquidação — que, em rigor, não é da sentença, e sim da obrigação, nela contida.

São múltiplos os fatores que impedem o juiz de proferir, no procedimento comum, sentenças contendo obrigações líquidas: ora decorre da própria natureza do pedido; ora da absoluta ausência de elementos nos autos (máxime da inicial e na contestação); ora da

Page 265

vasta quantidade de pedidos deduzidos pelos litigantes; ora das próprias circunstâncias em que a sentença foi prolatada (em audiência, e. g., quando o juiz possuía pouco tempo para compulsar, detidamente, os autos, com o objetivo de encontrar elementos que ensejassem uma condenação líquida) etc. Não é de grande interesse, para este livro, investigarmos as causas que conduzem ao proferimento de sentenças ilíquidas (obrigações ilíquidas), e sim estudarmos o procedimento judicial a ser observado quando isso acontece.

2. Conceito

Em sentido genérico, o verbo liquidar sugere a acepção de averiguar, tornar líquido, tirar a limpo; na terminologia processual, entretanto, o substantivo liquidação indica o conjunto de atos que devem ser praticados com a finalidade de estabelecer o exato valor da condenação ou de individualizar o objeto da obrigação. Como assinala Moacyr Amaral Santos, pela liquidação se visa a estabelecer o valor, a quantidade ou a espécie de obrigação, vale dizer, o que ou quanto é devido (obra cit., p. 2.396); Edson Baccaria a tem como “a operação pela qual atingimos um valor absoluto”. (Liquidação da sentença trabalhista. São Paulo: Cargine, 1974. p. 20); para Affonso Fraga, ela representa o “ato judicial pelo qual se determina o objeto da condenação” (Teoria e prática na execução das sentenças. São Paulo, 1922; Pontes de Miranda a vê como “o processo pelo qual se torna líquido o objeto ilíquido do pedido da condenação” (Comentários..., p. 510); José da Silva Pacheco afirma que “sentença ilíquida é aquela que não fixa o valor da condenação nem lhe individua o objeto” (Execução. Rep. Enc. do Dir. Bras., Rio de Janeiro: Borsoi, vol. 21, p. 183).

Pela nossa parte, conceituamos a liquidação como (a) a fase preparatória da execução, (b) em que um ou mais atos são praticados, (c) por uma ou por ambas as partes, (d) com a finalidade de estabelecer o valor da condenação (e) ou de individuar o objeto da obrigação, (f) mediante a utilização, quando necessário, dos diversos meios de prova admitidos em lei.

Examinemos, a seguir, individualmente, os elementos componentes do conceito que enunciamos.

(a) Fase preparatória da execução. Embora a liquidação, no processo do trabalho, do ponto de vista sistemático, integre a execução, sob o aspecto lógico ela figura como fase destinada a preparar a execução, a tornar exequível a obrigação contida no título judicial, seja precisando o valor da condenação ou individuando o objeto da obrigação. A liquidação possui, portanto, caráter não apenas quantificante, mas também individuante. Título judicial, cuja execução se promova sem prévia liquidação — sempre que esta fosse imprescindível —, é legalmente inexigível, rendendo ensejo a que o devedor argua a falta, em seus embargos (CPC, art. 525, § 1.º, III).

(b) Em que um ou mais atos são praticados. Este elemento da definição que elaboramos tem o propósito de chamar a atenção ao fato de que, embora, no geral, credor e devedor pratiquem diversos atos convenientes aos seus interesses, na liquidação há casos em que, às vezes, o escopo da liquidação é atingido mediante a prática de um só ato pela parte (o credor apresenta artigos de liquidação que não são impugnados pelo devedor).

Page 266

(c) Por uma ou por ambas as partes. Nada obstante o devedor tenha sido colocado em um ontológico estado de sujeição (ao comando sancionatório, que se esplende da sentença condenatória exequenda) pelo legislador, não se deve tirar desse fato a equivocada conclusão de que ele não possua, na liquidação, direito a praticar atos necessários a fazer com que a execução não transborde do título executivo em que se funda, ou que não se afaste do devido procedimento legal.

Tanto é verdadeira a assertiva que o Código lhe permite opor-se à execução, via embargos (CLT, art. 884); contestar os artigos de liquidação (CPC, art. 509, II), e o mais.

(d) Com a finalidade de estabelecer o valor da condenação. Cuida-se aqui de execução por quantia certa contra devedor solvente (CPC, art. 824), que tem na expropriação judicial de bens do devedor o seu objeto (ibidem). Bem atuais ou futuros (CPC, art. 789). Via de regra, as liquidações trabalhistas tendem a quantificar o valor da condenação, pois o que mais se costuma pedir, no âmbito da Justiça do Trabalho, é a emissão de provimentos condenatórios do réu ao pagamento de certa quantia.

(e) Ou de individuar o seu objeto. Em alguns casos — algo infrequente no processo especializado — o que se busca, na fase de liquidação, não é definir o quantum debeatur e sim individuar o objeto da obrigação a ser adimplida pelo devedor, ou seja, “qualidades e espécies, como nas ações universais, nas alternativas e condicionais...” (VELHO, Leite. Execução de sentenças. Rio de janeiro, 1985, p. 294, nota 1). Em situações como essas, a atividade que as partes deverão desenvolver, nessa fase preparatória da execução, concentra-se na fixação do gênero e da qualidade do objeto obrigacional.

(f) Mediante a utilização, quando necessário, dos diversos meios de prova admitidos em lei. Determinadas liquidações reclamam a abertura de fase voltada a provar certos fatos que são relevantes ou mesmo imprescindíveis para definir-se o montante da condenação. Esse momento probatório é comum na liquidação por artigos, notadamente porque o CPC dispõe que, nessa modalidade de liquidação, será observado o procedimento comum (art. 509, II). Daí vem a possibilidade de as partes requererem a produção de provas, segundo os meios especificados em lei (ou desde que moralmente legítimos, como adverte o art. 369 do CPC).

Torna-se despiciendo fazer constar da definição que apresentamos a ressalva de que os atos praticados pelo credor e pelo devedor, na espécie, estariam sob a fiscalização do juiz, pois essa vigilância do magistrado não constitui particularidade dessa fase de quantificação do débito, se não que traço marcante do processo moderno, que se manifesta em todos os momentos e em todas as espécies de procedimento.

Impende registrar que a necessidade de apurar-se a liquidez da obrigação, estampada no título executivo, decorre de norma legal imperativa, segundo a qual a execução, visando à cobrança de crédito, deve lastrear-se em título líquido, certo e exigível (CPC, art. 586, caput), sob pena de o desrespeito a esse mandamento conduzir à virtual declaração de nulidade da execução (CPC, art. 803, I).

Page 267

3. Natureza jurídica da liquidação

Na vigência do CPC de 1939, alguns estudiosos consideravam a liquidação um processo incidente no de execução. Pontes de Miranda, p. ex., entendia haver aí “Duas ações, fundadas em duas pretensões...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT