O patrimônio social e o processo coletivo no STJ: incursões a partir do direito à moradia digna

AutorAlberto Vellozo Machado/Odoné Serrano Júnior/Thiago de Azevedo Pinheiro Hoshino
Páginas125-140

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1. Introdução

Abordar o tema do direito processual civil em tribunais superiores de nosso país pode conduzir aos caminhos convencionais de como essas cortes vêm interpretando ferramentas tradicionais como, por exemplo, as tutelas de urgência ou juízos de admissibilidade, de recursos especiais no âmbito do Superior Tribunal de Justiça.

Optamos por fazer recorte diverso e com enfoque em algumas decisões do STJ, pretendendo decalcar os caminhos contemporâneos pelos quais a corte, responsável por interpretar o direito infraconstitucional brasileiro, tem percorrido para acolher o que vem sendo chamado de patrimônio social4.

Nos apropriamos da recentíssima hipótese de direito coletivo posta sob a regulação da Lei 7.347/85, em seu art. 1º, por força da Lei 13.004/14, vertida nos seguintes termos:

Art. 1º. Regem-se pelas disposições desta Lei, sem prejuízo da ação popular, as ações de responsabilidade por danos morais e patrimoniais causados:
[...]

VIII – ao patrimônio público e social. [itálico nosso]

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Nitidamente, o legislador estabelece uma diferenciação entre patrimônio público e patrimônio social, pretendendo deixar claro que há interesses basais e essenciais que devem merecer especial proteção.

Vislumbramos o patrimônio social como uma cláusula geral a indicar que os interesses públicos primários que se expressam nas fórmulas já fincadas na lei de ação civil pública, como meio ambiente, consumidor, bens e direitos de valor artístico, e stético, hist órico, turístico e paisagístico, ordem urbanística, honra e dignidade de grupos rac iais, étnicos ou re ligiosos, e outros difusos ou coletivos, devem ser sopesados especialmente pelo seu viés (patrimônio social), ou seja, é necessário que se estabeleça que a proteção a esses direitos contemple o destinatário da proteção não apenas a partir de suas características individuais, mas considerando, igualmente, a sua inserção social.

Equivale dizer que, na proteção de direitos coletivos lato sensu via, por exemplo, ação civil pública, todos os elementos de preservação do bem-estar do titular do direito colocado em análise devem ser ponderados, desde suas condições personalíssimas até a sua inclusão ou exclusão social.

Anela-se, neste breve estudo, afirmar que o STJ vem considerando, a partir da normativa infraconstitucional, o patrimônio social das pessoas, mesmo em demandas que não sejam coletivas, mas que apresentam um direito cole-tivo (individual homogêneo, difuso, coletivo em sentido estrito) a merecer exame e guarida.

Pretende-se, ainda mais, apontar que em vista desses direitos coletivos as ferramentas convencionais de proteção a direitos individuais se mostram insuficientes à definição da lide, impondo ao STJ que responda ao processo civil individual agitado com soluções de cunho coletivo, mediante um esforço dialético superador da concepção individualista que grassa na norma posta e, em certa medida, na formação dos juristas e daqueles que legislam.

Claro que neste ponto retorna-se ao embate já ancião de que para questões coletivas a modelagem de nossa processualística civil é débil.

O temário, de fato, não é novo, mas ainda atual!

A partir de três julgamentos da corte superior referentes à moradia e territorialidade ousaremos desvelar como o processo civil veicula mal direitos sociais e como os seus juízos necessariamente impõem diálogo a partir do patrimônio social para julgar matérias que afetam grupos ou a própria sociedade.

Há, sim, a nosso sentir, verdadeiro processo coletivo empírico em curso no STJ, na medida em que as temáticas que chegam ao seu crivo já mereceram a

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salutar mutação de orientação que o estado democrático de direito plasmou na sociedade brasileira ao privilegiar a dignidade da pessoa humana, permitindo o balanceamento entre liberdade e igualdade.

Assim é que o acesso à justiça, direito fundamental, exige, à míngua de melhor avanço da legislação processual civil, que os julgadores vejam e exerçam suas funções a partir do patrimônio social e do interesse geral, propiciando soluções que permitam a preservação do mínimo existencial.

Não há, naturalmente, um discurso da corte asserindo que em determinado caso a ferramenta processual civil é inábil à sua solução, mas há um comportamento de superação das limitações dessa legislação processual anacrônica para recepcionar direitos que somente com perspectiva coletiva do avanço na aquisição de novos papéis sociais e realidades das pessoas podem ser garantidos.

2. A conformação processual do conteúdo material dos direitos fundamentais: o caso do direito à moradia digna

Nos atendo ao enfoque moradia/territorialidade, trazemos a lume o que se tem discorrido sobre este fundante direito assentado no art. 6º da Constituição da República brasileira: a moradia digna.

No âmbito do Centro de Apoio Operacional da Promotoria de Justiça de Habitação e Urbanismo do Estado do Paraná, nas diversas orientações prestadas sobre a moradia digna, afirma-se que seus elementos constituintes foram especificados em normativas internacionais como o Comentário Geral
n. 4 do Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas, o qual deu densidade normativa ao art.11, § 1º, do Pacto Internacional dos Direitos Humanos Econômicos, Sociais e Culturais5.

Nesse marco, encontram-se enunciados os componentes: a) segurança jurídica da posse; b) disponibilidade de serviços, materiais, benefícios e infraestrutura; c) custo acessível; d) habitabilidade; e) acessibilidade; f) localização; g) adequação cultural.

Essa composição do direito à moradia digna é, neste campo, a manifestação do patrimônio social, vale dizer, uma moradia só servirá à dignidade da pessoa humana se nela for possível aferir todos esses elementos, e é nessa ordem de ideias que o supracitado artigo 11 dispõe que os Estados-partes tomarão medidas apropriadas para assegurar a consecução desse direito.

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O Poder Judiciário é, evidentemente, manifestação do Estado e bem por isso é que deve agir ao fito de assegurar, pela via da melhor exegese, a consecução dos direitos coletivos6.

Como o escopo jurídico e social deste estudo é descobrir a visão do STJ sobre o direito à moradia, três julgados serão usados como desveladores do exercício interpretativo da corte superior a identificar a nota coletiva deste direito, com respostas processuais suplantadoras dos lindes individualistas, detectando que os reclamos sobre moradia, nosso recorte, manifesta um coletivo social relevante, exigindo, mesmo, a concepção de um patrimônio social justificador da moradia.

E essa ideia, defende-se, imanente às relações em sociedade, avulta empiricamente nos debates do STJ.

2.1. A moradia como direito individual homogêneo: a tutela do conteúdo social da política habitacional

1. Hipótese em que o Ministério Público ajuizou Ação Civil Pública em defesa de mutuários de baixa renda cujos imóveis foram construídos em sistema de mutirão, com compromisso de compra e venda firmado com o Município de Andradas, pelo prazo de 15 anos. Após o pagamento por 13 anos na forma contratual, o Município editou lei que majorou as prestações para até 20% da renda dos mutuários. O Tribunal de origem declarou a ilegitimidade ad causam do Ministério Público.
2. O art. 127 da Constituição da República e a legislação federal autorizam o Ministério Público a agir em defesa de interesse individual indisponível, categoria na qual se insere o direito à moradia, bem como na tutela de interesses individuais homogêneos, mesmo que disponíveis, como, p. ex., na proteção do consumidor. Precedentes do STJ.
3. O direito à moradia contém extraordinário conteúdo social, tanto pela ótica do bem jurídico tutelado – a necessidade humana de um teto capaz de abrigar, com dignidade, a família –, quanto pela situação dos sujeitos tutelados, normal-mente os mais miseráveis entre os pobres.
[...]
5. Recurso Especial provido.
[...]

No caso, os interesses e direitos que afloram mais diretamente não são de natureza difusa, mas de cunho individual homogêneo, caracterização essa

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que traz conseqüências à legitimação para agir do Ministério Público. Implicações que brotam do fato de que, ao contrário do que se dá nos interesses e direitos difusos, em que a legitimação ministerial é decorrência natural e necessária do discrímen que assim se faça – poderíamos falar em legitimação automática ou ipso facto –, nos interesses e direitos individuais homogêneos, o Ministério Público só se legitima na presença da relevância social de sua intervenção, que decorre, entre outras causas, da indisponibilidade do substrato de fundo (a dignidade da pessoa humana, a qualidade ambiental, para citar dois exemplos) ou da massificação do conflito em si mesmo considerado. Naquele caso, trata-se de relevância social objetiva; neste, de relevância social subjetiva; num a indisponibilidade leva à relevância social; noutro, o tom social é decorrência do perfil molecular dos conflitos. Nos autos, identifico tanto a relevância social objetiva como a relevância social subjetiva. De um lado, o cumprimento escorreito (ou não) das obrigações contratuais do Município repercute não só na esfera dos contratantes efetivos, como também no universo maior da sociedade, ante o...

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