Quem tem o poder de 'dizer o direito'?: Os princípios jurídicos entre legisladores e juristas

AutorSérgio Said Staut Júnior
Páginas381-393

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Ver Nota12

1. Introdução

As questões principais deste trabalho encontram em uma decisão de relatoria do ministro Sérgio Kukina a sua inspiração3. Nesta decisão, do Superior Tribunal de Justiça, nota-se claramente a preocupação dos julgadores em interpretar a legislação levando em consideração, em especial, princípios como o da razoabilidade e do atendimento ao interesse público.

Trata-se de um julgado que pode ser visto como uma decisão corriqueira ou comum do STJ, mas que em realidade demonstra a preocupação dos magistrados (e, consequentemente, do seu relator) em trilhar o melhor processo hermenêutico de aplicação do direito ao caso concreto4.

2. Apresentação do tema: algumas perguntas que importam

Falar sobre o tema proposto implica discutir ou revisitar questões centrais para o direito, como as suas fontes, a sua legitimidade e a questão da interpretação. Remete, igualmente, para aquelas primeiras perguntas geralmente feitas em uma introdução ao estudo do direito, que são: “O que é o direito?”, ou “O que pode ser o direito?” e “O que pode não ser o direito?”.

Em um país como o Brasil, que adota um sistema de civil law e faz reverência ao princípio da tripartição dos poderes (ainda que de forma bastante seletiva), a perspectiva de um direito que não é (ou não é apenas) fruto do trabalho do legislador é uma questão que sempre desperta interesses e debates.

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Além de propiciar um espaço rico para discutir os temas clássicos acima indicados, o debate sobre “Quem diz o direito em sociedade?” ou “Quem tem o papel de dizer o direito em sociedade?” e uma outra inquietação que está na base dessas reflexões – “O direito é, de fato, tarefa de juristas ou apenas de juristas?” – envolve a questão do poder e, talvez especialmente, a distribuição ou disputa pelo mesmo (poder) em sociedade.

O presente trabalho não tem qualquer pretensão de responder aos questionamentos aqui realizados. A intenção é simplesmente compartilhar algumas preocupações que, na perspectiva adotada, parecem ser importantes para se pensar o atual momento do direito civil brasileiro.

Nesse sentido, a questão dos princípios, no direito, e o que é possível fazer ou criar com estas normas jurídicas na disputa (ou no diálogo) entre legisladores e juristas representa um espaço bastante rico para a reflexão acadêmica.

3. A discussão no âmbito do direito civil

Essa discussão, no âmbito de um direito civil contemporâneo, tem um significado especial, porque muito do que se tem de mais interessante na área decorre, em grande medida, de um trabalho construtivo, constitutivo ou criativo da doutrina5 e da jurisprudência – e, aqui, os princípios exercem um papel orientador fundamental.

Apenas exemplificativamente e de forma muito superficial podemos citar no âmbito doutrinário: i) toda a construção relacionada aos direitos da personalidade e sua efetividade; ii) as relevantes mudanças no âmbito do direito das obrigações decorrentes da boa-fé objetiva e da função social dos contratos; iii) a defesa de outras perspectivas teóricas e práticas para a posse (não mais como exteriorização da propriedade); iv) toda a discussão e elaboração sobre um novo (ou outro) direito de propriedade (funcionalizado) e sobre os novos direitos reais; e iv) a elaboração e consolidação de um direito de família que integra muito mais do que exclui, que não discrimina, que estende direitos e não os reduz.

Em relação à jurisprudência, e igualmente de forma apenas exemplificativa, podemos citar: i) os precedentes que deram origem à Súmula Vinculante 25 do Supremo Tribunal Federal (e a própria Súmula Vinculante 25 do STF), que reconhecem a ilicitude da prisão civil do depositário infiel (decisões que simbolizam muito deste direito civil preocupado com a tutela do ser

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e não apenas com o ter); ii) o polêmico julgamento da ação direta de inconstitucionalidade em relação ao artigo 5º da lei de Biossegurança, ADI 3510/ DF, STF, rel. min. Carlos Britto, 28 e 29.5.2008 (um dos exemplos mais significativos de um direito criado pela jurisprudência e fundamentado em argumentações que encontram nos princípios as suas bases); iii) toda a rica jurisprudência do STJ em relação à boa-fé objetiva (e o caminhar para um direito que valoriza a lealdade e a eticidade nas relações contratuais); e iv) as inúmeras decisões dos últimos vinte ou trinta anos que construíram um verdadeiro novo mundo para o direito de família (em que a decisão do STF envolvendo a união estável de pessoas do mesmo sexo e as decisões do STJ em relação ao casamento de pessoas do mesmo sexo são exemplos significativos e fundamentais para uma sociedade que quer e precisa superar preconceitos históricos).

Trata-se de exemplos, em regra, de um direito jurisprudencial e doutrinário muito rico e criativo. Como observado, são posicionamentos e decisões que integram, que reconhecem ou estendem direitos, preocupados com o cumprimento dos objetivos e das propostas estabelecidas na Constituição Federal de 1988.

Existem, portanto, evidências e comprovações doutrinárias e jurisprudenciais muito concretas que demostram a existência e talvez o crescimento, ou a retomada de consciência, deste direito doutrinário e jurisprudencial6.

Existem, porém, igualmente, exemplos muito negativos desse direito dos juristas (da doutrina e da jurisprudência). Sem entrar em detalhes, pode-se resumidamente mencionar a existência e a prática corrente, no Brasil, de inúmeras decisões arbitrárias ou carentes de fundamentação razoável, aceitáveis ou, no mínimo, possíveis. Verificam-se também interpretações e posicionamentos doutrinários comprometidos com interesses de poucos. E, como é sabido, existem (e não são poucos) juristas que se prestam a construir este tipo de direito (com “d” minúsculo).

Cabe mencionar, ainda, a preocupação crescente, na própria doutrina, com a questão da construção e respeito aos precedentes7 e com temas como ativismo e decisionismo judicial8. Tais inquietações se devem justamente porque demanda-se por maior segurança ou certeza no âmbito judicial.

Assim, falar em um direito jurisprudencial e doutrinário (baseado em princípios) como se isso fosse, aprioristicamente, melhor do que um direito dito legislado pode conter algumas armadilhas que devem (ou deveriam) ser evitadas.

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Revisitar criticamente, ainda que em linhas muito gerais, alguns momentos do pensamento jurídico ao longo da história do direito pode oferecer ferramentas adequadas para se refletir sobre estas temáticas do presente.

4. O significado da história do direito

As temáticas sugeridas podem ter contornos específicos nos dias de hoje, mas, do ponto de vista da teoria e da história do direito, não são tão novas assim. São questões que, com conteúdos, formas e sentidos diversos, são tematizadas ao longo da história. Trata-se, evidentemente, de preocupações de ordem profundamente cultural e antropológica. E, por isso, a resposta a estas perguntas depende, igualmente, do tempo e do espaço em que são pensadas.

Por isso, a compreensão dos institutos jurídicos e das suas implicações em sociedade não pode estar distanciada do estudo e da reflexão a respeito das diferentes temporalidades e localidades em que foram pensados e idealizados estes diferentes direitos.

Na linha de António Manoel Hespanha, verifica-se que “o direito existe sempre em sociedade e que, seja qual for o modelo usado para descrever as suas relações com os contextos sociais (simbólicos, econômicos etc.), as soluções jurídicas são sempre contingentes em relação a um dado envolvimento (ou ambiente). São, neste sentido, sempre locais”9. O direito é, evidentemente, um produto histórico e precisa ser compreendido como um fenômeno social, fruto das relações em sociedade, inserido em um determinado tempo e espaço10.

A relatividade temporal e espacial do direito merece ser destacada e bem compreendida para que não se naturalize o habitual. Historicizar os vínculos jurídicos e sociais existentes em dada comunidade sem naturalizá-los11 é tarefa necessária.

Nessa perspectiva, a proposta é trabalhar ou utilizar duas escolas do pensamento jurídico do século XIX, talvez as mais conhecidas no direito privado ocidental, para analisar criticamente a questão sugerida no presente artigo. Observar elementos da Escola da Exegese, para ter contato com uma visão de um direito mais legislativo (ou um direito mais legislado), e considerar a Escola Histórica do Direito como exemplo de um direito mais jurisprudencial (e sobretudo doutrinário).

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5. Escola da exegese: o direito como legislação

A Escola da Exegese é geralmente reconhecida como uma escola do pensamento jurídico francês, do século XIX, que identifica o direito com a lei proveniente do Estado, especialmente a codificada. É com o movimento de codificação na Europa que a lei estatal começa “a monopolizar a atenção dos juristas”12.

Na França, após 1804, com a elaboração do Code Civil, também chamado...

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