A reforma à lei da improbidade administrativa no contexto do estado republicano e seus impactos nos direitos humanos-fundamentais: um arranjo normativo para escalada da impunidade?
Autor | Iaci Pelaes dos Reis |
Ocupação do Autor | Doutor em Direito e Justiça pela UFMG |
Páginas | 27-51 |
Iaci Pelaes dos Reis • 27
A REFORMA À LEI DA IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA NO
CONTEXTO DO ESTADO REPUBLICANO E SEUS IMPACTOS
NOS DIREITOS HUMANO S-FUNDAMENTAIS: UM ARRANJO
NORMATIVO PARA ESC ALADA DA IMPUNIDADE?
Iaci Pelaes dos Reis1
Resumo: O objetivo deste artigo é analisar, em perspectiva crítica,
aspectos controvertidos da Lei nº 14.230/2021, que alterou a Lei de
Improbidade Administrativa (Lei nº 8.429/92), no contexto do Esta-
do Republicano e seus impactos nos direitos humanos-fundamen-
tais. Busca-se examinar o quadro geral da mudança legislativa e suas
implicações na tutela ao patrimônio púbico como bem comum que
se destina a garantir serviços públicos, que materializam direitos
fundamentais.
A partir de aportes teóricos do direito público, pretende-se vericar,
ainda, a reforma a LIA constitui-se medida legislativa adequada sob
a perspectiva da Constituição de 1988. Parte-se da hipótese de que
a Lei 14.230/2021 enfraquece o sistema de combate à improbidade,
atenta contra o princípio republicano, comprometendo, por via re-
exa, a garantia de direitos humanos-fundamentais.
Arma-se, por m, que a medida legislativa em debate ofende ao
princípio da vedação ao retrocesso social e o princípio da proteção
da conança legítima.
Palavras-chave: Reforma à Lei de improbidade administrativa.
Princípio republicano. Direitos humanos-fundamentais. Retrocesso
legislativo. Proteção da conança legítima.
1 Doutor em Direito e Justiça pela UFMG. Pós-doutor em direitos huma-
nos pela Faculdade de Direito de Coimbra/Portugal. Pós-doutor em direi-
tos sociais pela Universidade de Salamanca/Espanha. Professor Associado
da Universidade Federal do Amapá. Membro do Ministério Público do
Amapá. Coordenador do Centro de Apoio Operacional da Ordem Tribu-
tária do MP-AP.
28 • Sociedade, Direito & Justiça - volume 7
1. REFORMA À LEI DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA: RESQUÍCIOS
DO PATRIMONIALISMO ESTATAL NA CONTEMPORANEIDADE PARA A
ESCALADA DA IMPUNIDADE
A trajetória do Estado brasileiro é marcada pela cultura do
patrimonialismo2, caracterizada como modelo de exercício do po-
der que não faz distinção entre o que é público e o que é privado;
entre os bens particulares e os bens do Estado3.
Historicamente, esse modo perverso de exercer o poder
público remonta à tradição portuguesa e remete para o período do
Brasil colonial, quando aqui aportou a família real e implantou o
modelo de administração da metrópole portuguesa, que não fazia
distinção entre a Fazenda do rei e a Fazenda do reino4.
Em percuciente observação, Luís Roberto Barroso pontua
que a história do Estado brasileiro é assinalada por três disfunções
atávicas: o patrimonialismo, o ocialismo5 e a cultura da desigual-
dade. Para o jurista, o patrimonialismo remete para a tradição ibéri-
2 A origem do termo patrimonialismo remete para a dinâmica do poder
medieval, estando associada à relação de poder, em que o senhor feudal se
tornava dono do território onde organizava seu governo e de todas as ati-
vidades vinculadas ao seu domínio espacial. Acerca do tema, consulte-se
FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato político
brasileiro. São Paulo: Globo, 2012. HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes
do Brasil, 26ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. LEAL, Victor
Nunes. Coronelismo, enxada e voto: o município e o regime representativo
no Brasil, 7ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
3 BARROSO, Luís Roberto. Ob. cit. p. 245.
4 Alguns exemplos de patrimonialismo: a) uso do cargo público para obter
vantagem econômico ou algum benefício; b) usufruto de instituições do
Estado para satisfazer interesses particulares; c) gasto de verbas públicas
em favor próprio ou de grupo de interesse.
5 Segundo Luís Roberto Barroso, o ocialismo tem como traço marcante
a cultura do paternalismo estatal no sentido de que os projetos pessoais,
sociais ou empresariais cam na dependência do nanciamento do Estado,
ou seja, contam com os favores do presidente, do governador e do prefeito.
Essa dependência ocorre desde projetos extração de minérios, telefonia
às fantasias de carnaval, pois tudo ca à mercê do dinheiro do BNDES,
da Caixa Econômica, dos cofres estaduais e municipais. BARROSO, Luís
Roberto. Ob. cit. p. 245.
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