A regulamentação da desconsideração da personalidade jurídica na CLT

AutorLuiz Ronan Neves Koury
Páginas384-389

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1. Introdução

A previsão do incidente de desconsideração da personalidade jurídica no Código de Processo Civil foi bem recebida pelos processualistas civis ao argumento de que o instituto se ressentia de uma regulamentação procedi-mental para sua aplicação.

Embora valorizando a construção da teoria da desconsideração da personalidade jurídica no âmbito do direito material, com origem na jurisprudência e, posteriormente, a sua positivação em alguns diplomas legais, os processualistas argumentavam que a ausência de um procedimento legal para sua utilização trazia inegável insegurança jurídica.

Sustentavam que cada juiz fixava um procedimento próprio e, com isso, promoviam verdadeiro atentado aos princípios do devido processo legal, contraditório e ampla defesa.

A par de todo esse regozijo com a implementação de um procedimento legal relativo à teoria da desconsideração da personalidade jurídica, os operadores jurídicos do direito processual do trabalho, em sua maioria, receberam com ressalvas a novidade trazida pelo Código de Processo Civil.

Inicialmente porque, de uma forma geral, não havia qualquer dificuldade na aplicação do referido instituto na seara trabalhista, bastando, para tanto, que se garantisse o contraditório, aspecto que lhe preservava a indispensável eficácia.

Em segundo lugar, porque a principiologia do processo do trabalho não se compatibiliza com formalidades, como a instauração de incidente, suspensão do processo e necessidade de requerimento das partes, dentre outros, que são absolutamente avessos à ideia de celeridade e efetividade inerente à processualística trabalhista.

Como consequência, parte da doutrina se posicionou pela incompatibilidade de sua aplicação ao direito processual do trabalho em razão da evidente desar-monia com o espírito da norma processual trabalhista, havendo até mesmo posições que defendiam a sua aplicação com adaptações ao procedimento trabalhista, como a possibilidade da iniciativa do juiz na fase de execução, como é o caso da própria Instrução Norma-tiva n. 39 do TST.

O fato é que grande parte da produção doutrinária sobre o tema se prendeu à verificação da compatibilidade ou não da norma forânea com o processo do trabalho, questionando com frequência a sua congruência com os princípios do processo do trabalho, em especial a simplificação procedimental das formas.

Após a controvérsia resultante de sua previsão no Código de Processo Civil e possibilidade ou não de aplicação ao processo do trabalho vem à lume a Lei n. 13.467 de 13.7.2017 que, em seu art. 855-A, prevê o Incidente de Desconsideração da Personalidade Jurídica, com a aplicação da normatização prevista nos arts. 133 a 137 do CPC ao processo do trabalho.

Também em parte da nova regulamentação celetista foram adotadas as disposições contidas na Instrução Normativa n. 39/TST, que já previa a aplicação do referido incidente no processo do trabalho, quanto à natureza da decisão que acolhe ou rejeita o incidente, o recurso cabível e a possibilidade de concessão da tutela de urgência de natureza cautelar, apenas não fazendo referência à sua instauração de ofício pelo juiz (CLT, art. 878), que consta da referida Instrução.

É claro que com essa iniciativa legislativa boa parte dos argumentos até então apresentados perde a sua razão de ser porque centrados na compatibilidade de sua aplicação, aspecto já superado pela existência de previsão expressa sobre o tema na própria CLT.

O que se faz necessário agora é verificar em que medida e extensão a norma deve ser aplicada, considerando as peculiaridades do processo do trabalho, mas principalmente revisitando certos temas do direito material, ainda que de forma superficial, como a pessoa jurídica, a sua desconsideração e o papel do procedimento no

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contexto maior representado pela necessidade de se dar efetividade à execução trabalhista.

Ao que parece é no direito material que podemos encontrar fundamento para interpretação da norma agora existente na CLT, ou seja, a criação de pessoa jurídica e a sua desconsideração, como forma de evitar que seja utilizada como escudo para fraudes e o inadimplemento das dívidas.

A engenhosidade da doutrina da desconsideração da personalidade jurídica não pode se encontrar limitada em seus objetivos pela existência de formalidades que impeçam que seja atingida a sua finalidade.

Se no processo civil havia a necessidade de um procedimento para aplicação do importante instituto da desconsideração da personalidade jurídica, no processo do trabalho, em que impera a informalidade e simplicidade das formas, a sua implantação tem um efeito contrário, de impedir que se atinja, com a celeridade necessária, a efetividade da execução.

Mais uma vez vale lembrar que o procedimento, a despeito de sua importância como fator de segurança jurídica, não pode ser considerado um fim em si mesmo ou ter relevância maior do que o direito perseguido.

O que se pretende neste trabalho é criar itinerários, com esteio no espírito e principiologia da legislação processual trabalhista, que permitam que o objetivo da importante teoria da desconsideração da personalidade jurídica seja atingido, sem que isso implique em qualquer opção contrária ao texto legal.

É exatamente com base na constitucionalização de que se reveste o processo, em qualquer de seus ramos, que se deve encontrar uma saída para, sem contrariar os ditames legais, autorizar uma interpretação compatível com os princípios e premências da execução trabalhista.

2. Pessoa jurídica — desconsideração da pessoa jurídica

A criação da pessoa jurídica pelo direito, como sustentado na doutrina, teve por objetivo incrementar o empreendedorismo, porquanto se apresenta como uma forma de atuação nos negócios, sem comprometer o patrimônio individual.

Fábio Konder Camparato afirma que a criação de pessoa jurídica é uma técnica utilizada pelo direito para que alguns objetivos sejam atingidos, ou seja, a autonomia patrimonial com a supressão de responsabilidades individuais.1

Afirma o autor, em monografia sobre o tema mencionado, que: “(…) O gênero próximo da pessoa jurídica, como se demonstrará, é o sujeito de direito, e a diferença específica deve ser localizada em relação aos demais sujeitos de direito (pessoa física, nascituro, condomínio, massa falida…). Assim, o ponto de partida para a construção do conceito de pessoa jurídica é a constatação de que se trata de um tipo de sujeito de direito.2

Desse modo, a ficção representada pela pessoa jurídica é a de um sujeito de direito, com direitos e obrigações, que se responsabiliza no universo jurídico e material pelas transações que realiza e pelas relações em que se vê enredado.

Quando esse sujeito de direito não cumpre com as suas obrigações tem-se também a previsão de uma outra ficção jurídica representada pela desconsideração de sua personalidade, realizada episodicamente, apenas em determinado caso concreto, como forma de fazer face às obrigações e dívidas assumidas e não cumpridas.

A origem da teoria da desconsideração da personali-dade jurídica é atribuída a um julgamento ocorrido nos Estados Unidos em 1809, em que se analisou a pessoa jurídica em conjunto com seus sócios bem como um litígio na Inglaterra, em 1897, sem que se aprofundasse na análise do tema, o que somente ocorreu posterior-mente na Alemanha.3

É atribuída ao jurista alemão Rolf Serick, na década de 1950, a sistematização da desconsideração da personalidade jurídica, tendo como parâmetro a chamada, na Alemanha, penetração da pessoa jurídica, concluindo pela sua sujeição a derrogações ou mesmo ao caráter relativo da autonomia da pessoa jurídica.4

No Brasil a doutrina do disregard of legal entity trilhou um longo caminho até ser aceita. Atribui-se a Rubens Requião, em célebre conferência na Universidade Federal do Paraná, na década de 60, a sua abordagem pioneira e a defesa de sua aplicação ao nosso sistema jurídico.5

Atualmente, a teoria da desconsideração da personalidade jurídica tem...

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