Reprodução humana assistida

AutorMaria de Fátima Freire de Sá/Bruno Torquato de Oliveira Naves
Páginas101-134
CAPÍTULO 6
REPRODUÇÃO HUMANA ASSISTIDA
A evolução do conhecimento cientíco – somado ao fenômeno da globalização, ao declínio do pa-
triarcalismo e à redivisão sexual do trabalho – fez uma grande transformação da família, especialmente
a partir da segunda metade do século passado. Como será a família desse novo século [...]? Não é
necessário mais sexo para reprodução, e o casamento legítimo não é mais a única maneira de se legi-
timar as relações sexuais. [...] Afora a nostalgia de que a família na qual cada um de nós foi criado é a
melhor, sua travessia para o novo milênio se faz em um barco que está transportando valores totalmente
diferentes, como é natural dos fenômenos de virada de século. A travessia nos deixa atônitos, mas
traz consigo um valor que é uma conquista, ou seja, a família não é mais essencialmente um núcleo
econômico e de reprodução em que sempre esteve instalada a suposta superioridade masculina. Nessa
travessia, carregamos a ‘boa nova’ de que ela passou a ser muito mais o espaço para o desenvolvimento
do companheirismo, do amor e, acima de tudo, embora sempre tenha sido assim, e será, o núcleo
formador da pessoa e fundante do sujeito.1
1. INTRODUÇÃO
O f‌inal do século XX foi palco de inúmeras e aceleradas transformações advindas
dos avanços biotecnológicos. E, nesse contexto, a reprodução assistida trouxe consigo,
além das avançadas técnicas que permitem a realização do sonho de se ter um f‌ilho, a
possibilidade de efetivação de experiências genéticas que envolvam embriões humanos.
As recentes descobertas relacionadas à Genética clínica colocam-nos diante da
possibilidade de abertura da “caixa de Pandora”, porquanto dos fatos novos, novos e
inquietantes conf‌litos emergem. Certo é que precisamos ref‌letir, principalmente quando
nos conscientizamos que a Bioética e o Biodireito têm a diversidade e a pluralidade de
pensamentos como ponto comum. Ora, somos seres históricos e culturais, e os conhe-
cimentos que produzimos ou descobrimos serão contaminados pelos nossos valores,
também históricos e culturais. Não podemos mais, em pleno terceiro milênio, incorrer
no erro de acharmos que algo é def‌initivo. Nada é.
Eis aqui um capítulo da história da humanidade que nos faz pensar, a cada dia,
quais os limites que imporemos a nós mesmos perante o uso e a obtenção de embriões
humanos. As técnicas de reprodução humana assistida auxiliam casais e mulheres
sozinhas a terem f‌ilhos e, a contrapartida disso, em muitas situações, é a existência de
embriões excedentes, não utilizados nos procedimentos médicos.
1. PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Direito de família do século XXI. In: FIUZA, César; SÁ, Maria de Fátima Freire;
NAVES, Bruno Torquato de Oliveira (Coords.). Direito civil: atualidades. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 235-
236.
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BIOÉTICA E BIODIREITO • MARIA DE FÁTIMA FREIRE DE SÁ E BRUNO TORQUATO DE OLIVEIRA NAVES
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Neste capítulo, abordaremos de maneira sucinta algumas técnicas de reprodução
assistida, o panorama legislativo e os entraves que envolvem a questão.
A reprodução assistida é “o conjunto de técnicas que favorecem a fecundação
humana, a partir da manipulação de gametas e embriões, objetivando principalmente
combater a infertilidade e propiciando o nascimento de uma nova vida humana”.2
Há vários métodos de reprodução assistida e, neste espaço, citaremos apenas os
mais conhecidos, sendo eles: a Transferência dos Gametas para dentro da Trompa,
denominado GIFT (Gamete Intrafallopian Transfer); a Transferência do Zigoto para
dentro da Trompa, ZIFT (Zygote Intrafallopian Transfer); a Injeção Intracitoplasmática
de Espermatozoide, ICSI (Intracytoplasmic Sperm Injection); e, por último, mas talvez
o mais importante, a Fertilização in vitro, FIV.
A técnica de GIFT é usada para mulheres com infertilidade sem causa deter-
minada, ou aparente, ou, ainda, em razão da presença de leve endometriose. “Nesse
procedimento, o óvulo e os espermatozoides selecionados após a coleta são reunidos
em um mesmo cateter e imediatamente transferidos para a trompa, ambiente natural
da fecundação.”3
No método ZIFT, “a primeira divisão do zigoto, que dará origem ao embrião,
acontecerá já em seu ambiente natural, dentro da trompa. Ali, as células passarão a
multiplicar-se, enquanto o embrião em formação caminhará em direção ao útero”.4
Na ICSI o espermatozoide é introduzido diretamente no óvulo por meio de uma
agulha. Essa técnica também é conhecida como micromanipulação do óvulo. Segundo
Olmos:
Sua utilização recente inclui até mesmo alguns casais que eram considerados estéreis em razão das
baixíssimas quantidades de espermatozoides produzidas pelo parceiro ou da falta de motilidade dos
gametas masculinos para impulsionar a entrada no óvulo.5
A FIV – fertilização in vitro – é o “método que promove em laboratório o encontro
entre os espermatozoides e um óvulo colhido após tratamento com indutores”.6 Ocor-
rida a fertilização procede-se à transferência do embrião para o útero. Essa técnica será
utilizada uma vez esgotadas todas as possibilidades em relação ao uso das demais. Ela
deve ser vista como uma possibilidade secundária se outras técnicas, menos invasivas,
puderem ser utilizadas com sucesso.
2. RIBEIRO, Gustavo Pereira Leite. Breve comentário sobre aspectos destacados da reprodução humana assistida.
In: SÁ, Maria de Fátima Freire de (Coord.). Biodireito. Belo Horizonte: Del Rey, 2002, p. 286.
3. OLMOS, Paulo Eduardo. Quando a cegonha não vem: os recursos da medicina moderna para vencer a infertilidade.
São Paulo: Carrenho, 2003, p. 197.
4. OLMOS, Paulo Eduardo. Quando a cegonha não vem: os recursos da medicina moderna para vencer a infertilidade.
São Paulo: Carrenho, 2003, p. 198.
5. OLMOS, Paulo Eduardo. Quando a cegonha não vem: os recursos da medicina moderna para vencer a infertilidade.
São Paulo: Carrenho, 2003, p. 199.
6. OLMOS, Paulo Eduardo. Quando a cegonha não vem: os recursos da medicina moderna para vencer a infertilidade.
São Paulo: Carrenho, 2003, p. 189.
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CAPítUlO 6 • REPRODUÇÃO HUMANA ASSIStIDA
2. O PANORAMA LEGISLATIVO BRASILEIRO
2.1 O Código Civil de 1916 e o Código Civil de 2002
As codif‌icações brasileiras adotam o entendimento clássico de que sujeito de direito
é aquele que a ordem jurídica def‌ine como tal. Ao vincular personalidade e titularidade,
tanto o Código de 1916 quanto o de 2002, apontam três categorias distintas: pessoa
natural, nascituro e prole eventual. Nada dizem sobre a condição do embrião humano.
Sob o ponto de vista tradicional, entende-se por pessoa natural todo indivíduo capaz
de direitos e obrigações. O Código Civil estabelece o nascimento com vida como fator
determinante do início da personalidade, assegurando, todavia, os direitos do nascituro.
Assim, costuma-se af‌irmar que o Direito brasileiro adota a teoria natalista, opinião
contestada por muitos,7 em detrimento da teoria da personalidade condicional, impro-
priamente denominada concepcionista, e da teoria verdadeiramente concepcionista.
Entende esta última que a personalidade começa a partir da concepção. A teoria da
personalidade condicional também sustenta que o início da personalidade se verif‌ica a
partir da concepção, mas subordinada ao nascimento com vida. Já a corrente natalista
preceitua, como mencionado, que a personalidade depende do nascimento com vida,
af‌irmando que o nascituro não é pessoa.
A prole eventual constitui todo ente humano que pode vir a ser concebido. É o ente
humano futuro. O Código Civil brasileiro admite a aquisição de bens por testamento
por pessoa não nascida que o testador designe, cujo genitor ou genitores estejam vivos
no momento da abertura da sucessão,8 bem como a doação à f‌iliação futura, efetuada
em contemplação de casamento a se realizar.9
Em resumo, portanto, o Direito brasileiro reconhece e protege os direitos das pessoas
naturais (pessoas nascidas), assegura situações subjetivas do nascituro (aquele que se
encontra no ventre da mãe), como também garante vantagens à prole eventual (seres não
concebidos). Mas, e o embrião? Impossível caracterizá-lo como pessoa natural porque
inexiste o nascimento com vida; não é nascituro porque não se encontra no ventre ma-
terno; não pode ser caracterizado como prole eventual, porquanto já houve concepção.
Jussara Meirelles af‌irma a insuf‌iciência e a desnecessidade quanto ao esforço
hermenêutico extensivo das categorias tradicionais mencionadas. Segundo a autora:
Para melhor demonstrar o problema, impõe-se traçar um paralelo entre a situação do nascituro e a
do embrião pré-implantatório. Ao nascituro, ainda que se entenda que a atribuição de personalidade
coincide com a nidação e os seus direitos patrimoniais são subordinados à condição resolutiva veri-
7. Por todos: AMARAL, Francisco. Direito civil: introdução. 5. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. Segundo referido
autor, “O nascimento não é condição para que a personalidade exista, mas para que se consolide”, p. 223.
8. “Art. 1.799. Na sucessão testamentária podem ainda ser chamados a suceder:
I – os f‌ilhos, ainda não concebidos, de pessoas indicadas pelo testador, desde que vivas estas ao abrir-se a sucessão;
[...].”
9. “Art. 546. A doação feita em contemplação de casamento futuro com certa e determinada pessoa, quer pelos
nubentes entre si, quer por terceiro a um deles, a ambos, ou aos f‌ilhos que, de futuro, houverem um do outro,
não pode ser impugnada por falta de aceitação, e só f‌icará sem efeito se o casamento não se realizar.”
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