Sistemas Existentes

AutorDante A. Caponera
Ocupação do AutorJefe de de la legislación de la FAO
Páginas75-115
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S E
5.1 INTRODUÇÃO
Para entender verdadeiramente os sistemas de direito de águas existentes nos diferentes
países, é essencial conhecer seus antecedentes políticos, religiosos, sociais e jurídicos, bem
como os aspectos técnicos, ísicos, econômicos e outros. As políticas, a administração e a legis-
lação de recursos hídricos evoluem por meio de contatos interculturais e interdisciplinares e,
em grande parte, são inluenciadas pela história e pelos fatores ísicos. Uma breve descrição
dos principais sistemas de direito de águas no mundo é o ponto de partida para um exame
minucioso da situação em determinado país.
No século XVIII, o estudioso francês Montesquieu sabiamente disse: “As leis civis e as polí-
ticas devem se moldar tão bem ao país para o qual foram promulgadas que seria uma verda-
deira coincidência se as leis de um país se aplicassem a outro.”1
Embora os primeiros regulamentos e administração de águas estivessem geralmente
relacionados com um simples uso ou efeito danoso da água e com as penalidades por crimes
nas atividades hídricas, novos conceitos de política, administração e legislação dos recursos
hídricos foram surgindo, como resultado do aumento no número de usos.
Atualmente, a administração e os regulamentos de águas provêm dos sistemas jurídicos
prevalecentes, originalmente, em cada país, além dos conceitos ou das interpretações mais
modernas que são, com frequência, sobrepostos aos regulamentos, usos locais e costumes pre-
existentes.
No mundo inteiro, o direito e a administração de águas derivam de um, ou mais de um, dos
sistemas jurídicos e institucionais relacionados a seguir:
i. direito costumeiro;
ii. direito Romano - este inluenciou dois sistemas jurídicos, a saber: o do common law, na
Inglaterra (e as novas doutrinas dos EUA) e o romano-germânico;
iii. direito Islâmico;
iv. direito Soviético;
v. direito Hinduísta e Budista.
1 MONTESQUIEU, L’esprit des lois.
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PRINCÍPIOS DE DIREITO E ADMINISTRAÇÃO DE ÁGUAS NACIONAIS E INTERNACIONAIS
5.2 PRINCÍPIOS ORIGINAIS DO DIREITO
DE ÁGUAS ROMANO E SUA INFLUÊNCIA NA
LEGISLAÇÃO SUBSEQUENTE
Os princípios do direito de águas do direito romano têm exercido profunda inluência na
legislação e na administração de águas das nações modernas e, ao longo da história, tomou
três direções principais. Seus conceitos originais ainda podem ser encontrados nos princí-
pios básicos do direito de águas dos países que adotam o sistema jurídico civilista, ou seja,
países que seguiram os princípios estabelecidos no Código Napoleônico Francês promul-
gado em 1804;2 os chamados países do common law, derivando sua legislação da aplicação
inglesa do direito romano original;3 e nas chamadas doutrinas hídricas de apropriação, uso
benéico e direitos correlacionados originadas nos Estados Unidos da América.
Em termos simples, o antigo direito romano subdividia os recursos hídricos em três
categorias:
i. águas comuns de todos (res comunis omnium), ou seja, águas que não podiam ser
objeto de propriedade. Ninguém, indivíduo, comunidade, ou mesmo o Estado ou
o soberano podia ser proprietário dessas águas; junto com o ar e o mar (litoral),
só podiam ser objeto de direito de uso. Todas as águas correntes pertenciam a
esta categoria;
ii. águas públicas (res publicae), ou seja, as pertencentes a uma comunidade, um
município, ou outra instituição pública. O uso dessas águas era reservado às
instituições, que detinham sua titularidade. As instituições podiam, por sua vez,
conceder o direito de uso a outros usuários;
iii. águas privadas, ou seja, as de propriedade privada. Somente pequena parte dos
recursos hídricos era considerada privada: água de chuva, água subterrânea e
pequenos corpos d’água. Em geral, essas águas pertenciam ao proprietário da
terra. O proprietário tinha direito de uso exclusivo e ilimitado, independentemente
das consequências que o uso pudesse causar a terras vizinhas ius utendi et
abutendi).
No Direito romano, o direito de propriedade e uso da água pelo dono da terra era
necessariamente limitado por direitos similares de proprietários de terra vizinhos e
pelos direitos adquiridos ou outorgados pelo Estado a terceiros. Quanto ao direito dos
vizinhos, o direito romano, que considerava a água parte integrante da terra, dava inteira
liberdade ao dono de dispor, a seu critério, de toda a água encontrada em sua terra, sem
qualquer consideração por seus vizinhos, embora sujeito a sofrer tratamento similar por
parte deles.
5.3 DIREITO DE ÁGUAS COSTUMEIRO: SUA IMPORTÂNCIA
O direito de águas costumeiro existe no mundo inteiro e desempenha importante papel na
gestão hídrica, especialmente para os usuários. As práticas costumeiras podem ser locais,
regionais ou tribais, e podem resultar de regras bem estabelecidas. Com frequência, essas
2 Ver Item 5.5.
3 Ver Item 5.6.
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SISTEMAS EXISTENTES
práticas persistem apesar da introdução de instituições e sistemas legais subsequentes.
Os costumes e usos tradicionais determinaram, e ainda determinam, os direitos de
uso da água e sua administração. Em geral, os direitos costumeiros tradicionais não estão
escritos nem registrados, sendo transmitidos por via oral, de geração em geração.
Os costumes têm sido deinidos como a expressão espontânea da formação de um
direito, enquanto a lei escrita representa sua forma codiicada. Historicamente, os cos-
tumes foram a primeira e exclusiva fonte das normas jurídicas; o direito costumeiro
tem-se baseado na observância constante e uniforme das regras de conduta desenvol-
vidas pelos membros de uma comunidade, na certeza de que correspondem a uma neces-
sidade ou obrigação legal. Desde os tempos mais remotos, os costumes têm inluenciado
decisivamente a formulação de direitos objetivos. Quando surgiu, a legislação considerou
os costumes uma fonte importante, seja autônoma ou paralela a outras fontes. O Estado
assumiu o poder de promulgar preceitos legais e, consequentemente, o direito escrito foi
vagarosamente suplantando o direito costumeiro.
Embora os códigos escritos tenham reduzido a importância dos costumes como
fonte de direito, sua inluência ainda é sentida, especialmente em nível local.
Em geral, o direito de águas costumeiro trata de temas como:
i. status jurídico da água segundo os costumes;
ii. distribuição e gestão costumeira dos direitos hídricos;
iii. procedimentos costumeiros de resolução de litígios entre usuários da água;
iv. administração costumeira da água.
Alguns países não têm nem leis escritas nem administração de águas adequadas,
mas baseiam-se nos usos e costumes locais. Uma vantagem do direito costumeiro tradi-
cional sobre o direito escrito é sua lexibilidade, que facilita a adaptação às necessidades
locais em qualquer momento. A nível de usuário, é um sistema geralmente bem conhe-
cido, respeitado e obedecido. Algumas vezes é o único sistema conhecido pela população
e, portanto, não pode ser ignorado ou desprezado. Como exemplo, pode-se citar um fato
ocorrido em um país africano, em que um funcionário do departamento de águas da
capital foi a uma aldeia para realizar uma inspeção do sistema de distribuição. Ele foi mal
recebido pela administração hídrica costumeira tradicional, que ignorou completamente
sua função oicial.
Por outro lado, o direito costumeiro é incerto por natureza, uma vez que seus limites
são geralmente mal deinidos. Além disso, sua modiicação é um processo demorado e
nem sempre pode acompanhar a evolução dos usos e do gerenciamento dos recursos
hídricos no mundo moderno, que com frequência exige transformações rápidas e pro-
fundas.
Antes de introduzir ou implementar os conceitos modernos da política, adminis-
tração e legislação de recursos hídricos, é necessário realizar uma análise preliminar das
práticas legais existentes, incluindo os costumes prevalecentes, a im de deinir e deli-
mitar com clareza os direitos de uso costumeiros e tradicionais existentes.
A vantagem das leis escritas é que garantem, à sociedade à qual se referem, volume e
qualidade de água bem deinidos, além de uma delimitação clara dos direitos individuais.
Nos países que possuem legislação hídrica escrita e uma administração de águas
adequada, os usos e costumes locais geralmente permanecem não escritos, por se refe-
rirem a usos menores da água, e a casos para os quais faltam, no direito codiicado,
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