As renegociações da dívida entre união e estados e a crise do federalismo fiscal

AutorFrancisco Secaf Alves Silveira
Páginas499-531
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AS RENEGOCIAÇÕES DA DÍVIDA ENTRE UNIÃO
E ESTADOS E A CRISE DO FEDERALISMO FISCAL
Francisco Secaf Alves Silveira1
SUMÁRIO: 1. Introdução – 2. Breve histórico sobre a evolução do federalismo
brasileiro – 3. Financiamento e renegociações de dívida dos entes subnacio-
nais: os processos à recentralização do federalismo fiscal nos anos 1990 e nos
anos 2010 – 4. O Supremo Tribunal Federal e a pressão pela renegociação da
dívida entre Estados e União – 5. Conclusões.
1. INTRODUÇÃO
O Brasil nasceu um Estado unitário, convertido ao fede-
ralismo num “gesto de mágica, com o advento da República
dos Estados Unidos do Brasil (15/11/1889)”2. Ao contrário de
outras Federações, que decorreram de uma união de entes
autônomos, o federalismo brasileiro partiu do centro para as
1. Doutor em Direito Econômico e Financeiro pela Universidade de São Paulo,
com período sanduíche na Universidad Carlos III de Madrid (bolsa CAPES/
PDSE). Possui graduação em direito pela Escola de Direito de São Paulo da FGV
(2009), especialização em Direito Tributário pela Universidade de São Paulo
(2011) e Mestrado em Direito Econômico e Financeiro pela Universidade de São
Paulo (2014). Advogado no Rivitti e Dias Advogados, na área de contencioso tribu-
tário. Professor universitário.
2. OLIVEIRA, Regis Fernandes de. Curso de Direito Financeiro. 4ª edição. São Pau-
lo: Editora RT, 2011, p. 37.
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demais unidades, mas tampouco poderia ser considerado um
federalismo por agregação, porquanto não preexistiam entes
dotados de estatalidades. O federalismo brasileiro nasceu “por
simples conversão ex lege das províncias em Estados Federa-
dos (...), como um federalismo normativo” 3, aspecto histórico
que ainda tem consequências para o seu atual funcionamento.
O surgimento da federação a partir de um Estado Unitá-
rio e por “conversão ex lege” contribui para a instabilidade do
federalismo brasileiro, não por ameaças significativas de se-
paratismo, mas por recorrentes movimentos de centralização
de poder ao longo de nossa história. Se, de um lado, a ausên-
cia de divisões étnicas ou religiosas no processo de formação
do federalismo reduz as ameaças provenientes de movimen-
tos separatistas; de outro lado, o processo de formação a par-
tir de um Estado unitário, sem a presença de tais elementos,
provoca a sensação de que é sempre possível recentralizar e
remodelar o federalismo conforme as circunstâncias do mo-
mento. Há, ao longo da história nacional, um movimento pen-
dular entre centralização e descentralização, em grande parte
determinado pelas pressões orçamentário-financeiras.
No presente artigo, analisa-se esse movimento pendu-
lar - entre centralização e descentralização – a partir das
renegociações da dívida entre União e Estados durante o fi-
nal dos anos 1990 e na atual década. Mais especificamente,
avaliam-se as renegociações instrumentalizadas nas Lei nº
9.496/97, Lei Complementar nº 148/2014, Lei Complementar
nº 151/2015, Lei Complementar nº 156/2016 e Lei Complemen-
tar nº 159/2017. O percurso federativo ocorrido entre 1998 e
2017 bem demonstra como nosso modelo tem sido moldado
segundo uma lógica conjuntural, com forte limitação da auto-
nomia federativa em momentos de crise.
Por último, o artigo analisa as recentes controvérsias ju-
diciais em relação aos cálculos da dívida da União com Es-
tados (decorrentes dos programas de refinanciamentos e
3. TORRES, Heleno Taveira. Direito Constitucional Financeiro: Teoria da Constitui-
ção Financeira. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014, p. 247.
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renegociações), bem como o papel recentemente assumido
pelo Supremo Tribunal Federal no debate federativo.
2. BREVE HISTÓRICO SOBRE A EVOLUÇÃO DO
FEDERALISMO BRASILEIRO
Desde a adoção do modelo federativo, a autonomia dos
entes subnacionais, então “províncias”, foi consideravelmen-
te restrita. A Constituição de 1824 asfixiou as províncias e a
Constituição de 1891, embora tenha estabelecido um regime
mais abrangente de divisão de competências entre União e
Estados-membros, foi logo submetida à Reforma de 1926 e a
limitações à competência dos Estados4. A Reforma Constitu-
cional de 1926 é um dos exemplos históricos da centralização
do federalismo brasileiro, já nos seus primórdios, justificado,
dentre outros motivos, pela necessidade de controlar a dívida
e as finanças públicas. Com o propósito de pôr fim ao “des-
calabro financeiro reinante em várias unidades federadas”5,
admitia-se que a União interviesse nos Estados cuja incapaci-
dade para a vida autônoma se demonstrasse pela cessação do
pagamento de sua dívida fundada por mais de dois anos.
Mesmo durante a República Velha, marcada pelo poder dos
Estados e das regiões na condução do Estado Nacional, somen-
te alguns poucos Estados (destacadamente Minas Gerais e São
Paulo) detinham efetivamente poder, sendo esse período deter-
minante para a construção de uma visão pró-centralização, com
resquícios que ainda influenciam o debate federalista atual.
O processo de construção do federalismo brasileiro con-
centrou a autoridade decisória de gasto (e de poder regulató-
rio) no governo central, o que é decorrente de uma percepção
4. OLIVEIRA, Regis Fernandes de. Curso de Direito Financeiro. 4ª edição. São Pau-
lo: Editora RT, 2011, p. 38.
5. FAGUNDES, M. Seabra. Novas perspectivas do federalismo brasileiro. Revista de
Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Revista dos Tribunais, 99:01-11, jan.-mar.,
1970, p. 04.

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