Re 572.672/sc: federalismo fiscal e a importância da interpretação estrutural

AutorCarlos Alexandre de Azevedo Campos
Páginas563-596
541
RE 572.672/SC: FEDERALISMO FISCAL E
A IMPORTÂNCIA DA INTERPRETAÇÃO
ESTRUTURAL
Carlos Alexandre de Azevedo Campos1
SUMÁRIO: 1. Introdução – 2. O RE 572.672: 2.1. Os argumentos do Estado-
-membro recorrente; 2.2. Fundamentos e conclusão do julgamento; 2.3. Proble-
matização – 3. Críticas à posição do STF – 4. A deficiência conceitual – 5. A
deficiência da fundamentação – 6. A deficiência metodológica – 7. Propondo
limites e possibilidades – 8. Conclusões.
1. INTRODUÇÃO
Constitucionalismo é o projeto normativo de criar, alocar e
constranger os poderes do Estado. Constituição, por sua vez, é
o desenho inaugural e fundamental desse projeto. Para que pro-
movam um documento de sucesso, os “designers constitucionais”
e os intérpretes devem se ocupar de como melhor distribuir o
poder entre atores políticos e instituições, do quanto de poder
1. Mestre e Doutor em Direito Público pela UERJ. Professor-Adjunto de Direito Fi-
nanceiro e Tributário na graduação, mestrado e doutorado da UERJ. Ex-Assessor
de Ministro do STF. Advogado. Membro da Associação Brasileira de Direito Finan-
ceiro – ABDF, da Sociedade Brasileira de Direito Tributário – SBDT e da Interna-
tional Fiscal Association – IFA .
542
FEDERALISMO (S) EM JUÍZO
esses atores e instituições podem de fato possuir e de como re-
distribuir esse poder em resposta às mudanças fáticas e políticas
sucessivas. É o que a doutrina contemporânea tem denominado
de “direito constitucional estrutural
2
: o objeto é a distribuição,
equilíbrio e redistribuição de poder; os mecanismos são o princí-
pio da separação de poderes – poderes do presidente e do parla-
mento, estado administrativo, judicial review – e o federalismo
3
.
Dentro desse quadro, federalismo é a teoria normativa
ou filosofia política, conceitual e dinamicamente associada ao
constitucionalismo4, que propõe formas variadas de distribuir
verticalmente o poder político entre diferentes níveis coor-
denados e independentes de governo. Possui, assim, uma di-
mensão normativa. Federação, por sua vez, é o arranjo insti-
tucional estabelecido como uma das estruturas de divisão de
poderes em uma determinada Constituição. Federação seria,
desse modo, o modelo de estado ou prática institucional que
os constituintes estabelecem por inspiração do conceito nor-
mativo de federalismo que adotam5. Como ocorre com o tra-
balho constitucional geral de distribuir e equilibrar poderes
políticos, a divisão vertical de autoridade, no plano tanto do
desenho inaugural como de sua operação, encerra inúmeras
dificuldades e perplexidades. Especialmente no mais impor-
tante campo dessa prática: o do federalismo fiscal. Este últi-
mo é o tormentoso tema deste artigo – de alta complexidade
teórica e de implicações práticas dramáticas.
Princípios do federalismo fiscal ocupam-se de pro-
por como melhor alocar, distribuir e limitar, de um lado,
2. LEVINSON, Daryl J. Looking for Power in Public Law. Harvard Law Review Vol.
130 (1), 2016, p. 33.
3. Ibidem, p. 102: “Junto com a separação de poderes, federalismo constitucional é
concebido como um mecanismo para difundir e equilibrar poder”.
4. Para essa vertente de pensamento, cf. o clássico FRIEDRICH, Carl Joachim.
Trends of Federalism in Theory and Practice. New York: Praeger, 1968.
5. Sobre essa distinção, cf. HALBERSTAM, Daniel. Federalism: Theory, Policy,
Law. In: ROSENFELD, Michel; SAJÓ, András. The Oxford Handbook of Compara-
tive Constitutional Law, 2012, p. 580-581.
543
FEDERALISMO (S) EM JUÍZO
responsabilidades, funções e gastos, e de outro, o poder de tri-
butar e as transferências de recursos, entre os níveis central
e subnacionais de governo. Trata-se de arranjo fundamental
para a delimitação e o financiamento dos serviços públicos.
Esse arranjo é sempre problemático em todos os países que
adotam tal forma de organização política. As dificuldades al-
cançam tanto o nível desejável de transferência de responsa-
bilidades do ente central aos periféricos, como a medida ne-
cessária de autonomia política e financeira dos entes menores.
As distorções de nosso modelo têm chegado ao que podemos
chamar de verdadeira crise do federalismo fiscal brasileiro.
Recentes acontecimentos econômicos, políticos e sociais não
deixam dúvidas quanto à plena vigência dessa crise.
Essas distorções são, muitas vezes, agravadas por inter-
pretações equivocadas ou por fundamentações insuficientes
realizadas pelo “árbitro da Federação” – o Supremo Tribunal
Federal. Tal circunstância inspirou os ilustres coordenadores
desta coletânea a criativamente chamarem-na de “Federalismo
(s)em juízo”. O presente artigo se ocupa de uma das importan-
tes decisões que o Supremo tomou para a operação de nosso fe-
deralismo fiscal: o julgamento do RE 572.672/SC6, ocorrido em
18/6/2008, no qual se discutiu se os Estados-membros podem
diferir o recolhimento do ICMS, como medida de incentivo eco-
nômico aos contribuintes, com prejuízo à cota do imposto que
pertence aos municípios nos termos do art. 158, inciso IV, da
CF/88. A titularidade dos Municípios quanto à parte da receita
do ICMS tem o condão de limitar o exercício da competência
tributária pelos Estados? O Supremo disse que sim. Este artigo
não visa a criticar a conclusão do Tribunal, mas apenas apontar
certa insuficiência da fundamentação. As minhas objeções são
voltadas às críticas doutrinárias em face da decisão.
O texto tem a seguinte divisão: além desta Introdução (1),
delimito, no próximo item (2), o objeto do artigo ao discorrer
6. STF – Pleno, RE 572.672/SC, Rel. Min. Ricardo Lewandwski, j. 18/6/2008, DJ
5/9/2008.

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT