Autonomia forjada e desconstitucionalização do direito fundamental ao trabalho digno: o fenômeno da uberização como dimensão de precarização do trabalhador

AutorPaulo Henrique de Oliveira Blair e Maria Eduarda Gomes Pereira
Ocupação do AutorDoutor em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília (UnB)/Advogada
Páginas248-263
CAPÍTULO 18
(1) Doutor em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília (UnB). Juiz do Trabalho (TRT da 10ª Região). Professor voluntário da
UnB. Pesquisador integrante dos Grupos de Pesquisa Percursos, Fragmentos, Narrativas: História do Direito e do Constitucionalismo (UnB/
CNPq) e Trabalho, Constituição e Cidadania (UnB/CNPq).
(2) Advogada. Bacharel em Direito pela Universidade de Brasília (UnB).
Autonomia Forjada e Desconstitucionalização do
Direito Fundamental ao Trabalho Digno:
O Fenômeno da Uberização como Dimensão
de Precarização do Trabalhador
PAULO HENRIQUE DE OLIVEIRA BLAIR
(1)
MARIA EDUARDA GOMES PEREIRA
(2)
Resumo: O presente estudo pretende analisar o fenômeno da uberização, bem como a sua implicação na esfera jurídica, social e
econômica dos trabalhadores, por se tratar de uma forma inédita de gerenciamento de mão de obra na sociedade contemporâ-
nea. O desenvolvimento da tecnologia da informação e de comunicação, somado ao contexto de crescimento do desemprego
no globo, deu origem à economia do compartilhamento, que tem por base um modelo de negócios que permite às pessoas
oferecer e adquirir bens e serviços uns dos outros através de plataformas on-line. Nesse contexto, há o surgimento da empresa
Uber, que passa a romper com a antiga estrutura de intermediação da cadeia produtiva, estabelecendo uma nova forma de su-
bordinação do trabalho ao capital, sem a mediação de um emprego formal. Diante desse quadro, outras empresas surgiram e se
multiplicaram como intermediadoras de uma série de serviços, conectando usuários e prestadores de serviço e desencadeando
profundas transformações nas relações trabalhistas. Pretende-se, portanto, a partir de referências e do exame de jurisprudência e
legislações, analisar de que forma este novo fenômeno tem sido apropriado juridicamente pelo Brasil e fora dele e qual o impacto
que esta nova forma de gerenciamento de mão de obra acarreta para a vida material destes trabalhadores. No Brasil, observa-se
o fenômeno da uberização à luz do que preceitua a Constituição Federal de 1988, que incorpora a dimensão de trabalho digno
enquanto garantia fundamental e rechaça o trabalho destituído de sua capacidade civilizatória e democrática.
Palavras-chave: Uberização. Economia do compartilhamento. Trabalho digno. Subordinação direta.
Abstract: The present study expects do analyze the uberization phenomenon, such as its implication in the legal, social and
economic sphere of the workers, considering it’s a new way of labor management in conteporary society. The development of
information and communication technology, added to the context of unemployment growth around the world, gave rise to the
sharing economy, that can be described as a business model that allows people to offer and purchase goods and services from
each other throught online platforms. In this context, there is the emergence of the Uber Company, that starts to break with
the old structure of intermediation of the production chain, establising a new way of subordination of labor to capital, without
the mediation of a formal employment. Faced with this scenario, other companies emerged and multiplied as intermediaries
of a range number of services, connecting users and service providers, and triggering deep transformations in labor relations.
From bibliographic references and the exam of the jurisprudence and laws, it hopes, therefore, to analyze in which way this new
phenomenon has been legally apropriate by Brazil and beyond, and what is the impact that this new form of labor management
entails for the material life of the workers. In Brazil, the uberization phenomenon is obeserved in the light of Brazilian Constitution
of 1988, that incorporates the dimension of dignified labor as a fundamental guarantee and rejects the work of its civilizing and
democratic capacity.
Keywords: Uberization. Sharing economy. Dignified labor. Direct subordination.
Autonomia Forjada e Desconstitucionalização do Direito Fundamental ao Trabalho Digno
Capítulo 18
249
1. INTRODUÇÃO
Nos tempos atuais emerge uma forma inédita de
gerenciamento da mão de obra que ficou conhecida
como “uberização”. Trata-se de um fenômeno no qual
prestadores e usuários de determinados serviços ou
atividades se conectam por meio de um aplicativo vir-
tual, proporcionando ao usuário a satisfação de sua
demanda; ao prestador um valor remuneratório de
contraprestação pelo serviço realizado; e à empresa
de tecnologia responsável pelo aplicativo um percen-
tual do valor recebido no curso da realização daquele
serviço.
Nos últimos anos, o fenômeno da uberização tem
crescido e despontado como uma das principais alter-
nativas de trabalho para grande parcela da população
que, ou enfrenta o desemprego como realidade, ou
acumula diversos trabalhos informais– “bicos”– e tem
na uberização um complemento de sua renda.
A uberização pode ser entendida, então, como uma
forma de trabalho realizada sob demanda e impulsio-
nada a partir das inovações tecnológicas no campo da
informação e da comunicação. Ocorre que, como será
visto adiante, as empresas envolvidas nessa relação– e,
nesse cenário, a Uber ascende como a principal delas,
vindo daí a nomenclatura “uberização” – se autodefi-
nem como meras “intermediadoras” de todo o proces-
so, abstendo-se de qualquer responsabilização, sobre-
tudo no que concerne aos direitos trabalhistas.
Nessas circunstâncias, o presente artigo tem por
objetivo principal analisar o papel da uberização no
processo de precarização das relações de trabalho e
do próprio trabalhador. Através deste, a hipótese aqui
elencada é a de que o fenômeno da uberização, en-
quanto nova configuração de administração de mão
de obra exercida através de plataformas digitais no
contexto da economia compartilhada, não reflete um
trabalho autônomo, pelo contrário, representa fraude
na legislação trabalhista e na proteção ao trabalho,
havendo por consequência a máxima precarização do
trabalhador.
(3) A informação encontra-se disponível em: .
(4) A informação encontra-se disponível em:
-viagens-realizadas/
(5) A informação encontra-se disponível em: .
(6) A informação encontra-se disponível em:
-viagens-realizadas/>.
(7) SILVA, Juliana Coelho Tavares, CECATO, Maria Áurea Baroni. A uberização da relação individual de trabalho na era digital e o direito do trabalho
brasileiro. Universidade Federal da Paraíba: Cadernos de Dereito Actual n. 7 Extraordinário, 2017. p.257-271.
(8) FONSECA, Lincoln Saldanha Fernandez da. Fronteiras da precarização do trabalho: uberização e o trabalho on-demand. XXXI Congreso Alas
Uruguay, 2017.
Nesse sentido, pretende-se trazer a noção de traba-
lho digno cristalizada pelo nosso ordenamento consti-
tucional, a fim de que, a partir dessa concepção, possa
ser demonstrada a importância do Direito do Trabalho
na proteção das relações trabalhistas, que são sempre
assimétricas dentro da sociedade capitalista.
2. O FENÔMENO DA UBERIZAÇÃO
2.1. Surgimento
O ano era 2008, quando Travis Kalanick e Garrett
Camp alegaram ter tido a ideia(3) para a criação do apli-
cativo que hoje está presente em 129 países do globo(4):
o Uber. A inspiração para tanto, de acordo com seus in-
ventores, foi a dificuldade que sofreram, em pleno in-
verno francês, para conseguirem pegar um táxi(5). A par-
tir daí, conceberam a ideia de um serviço em que seria
possível, com apenas um toque de um botão, chamar
um carro particular para realizar o transporte desejado.
Em 2009, a empresa foi fundada e, atualmente, já conta
com 2,6 bilhões de viagens realizadas e 17 bilhões de
km rodados(6) em todo o mundo.
A empresa de tecnologia Uber technologies Inc. atua
por meio de uma plataforma digital, de suporte tecno-
lógico e on-line a motoristas e usuários previamente
cadastrados no aplicativo, exercendo o papel de inter-
mediação entre ambos(7). Trata-se, portanto, de uma
relação tríplice, em que duas pessoas são colocadas
em contato através de um terceiro, sendo este último a
própria tecnologia proporcionada pela empresa.
A Uber, nesse sentido, se insere no contexto de
empresas criadas com base no conceito de sharing eco-
nomy, ou, economia do compartilhamento. A econo-
mia do compartilhamento tem por base um modelo de
negócios que permite às pessoas poderem oferecer e
adquirir bens e serviços uns dos outros via plataformas
on-line(8).
A ideia por trás do consumo colaborativo é, jus-
tamente, a ênfase no acesso ao bem ou serviço e não
na propriedade dos recursos. Inclusive, não é coinci-

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT