Teletrabalho na quarta revolução industrial e o risco de dano existencial à luz do direito fundamental ao trabalho digno

AutorCarolina Di Assis
Ocupação do AutorMestranda em Direito, área de concentração 'Direito, Estado e Constituição', pela Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB)
Páginas289-304
CAPÍTULO 21
(1) Mestranda em Direito, área de concentração “Direito, Estado e Constituição”, pela Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB).
Pesquisadora integrante do Grupo de Pesquisa Trabalho, Constituição e Cidadania (UnB/CNPq). Especialista em Docência Universitária pela
PUC Goiás. Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Goiás (UFG). Licenciada em Letras-Português pela UFG. Servidora efetiva do
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Goiano (IF Goiano-Campus Trindade).
Teletrabalho na Quarta Revolução Industrial
e o Risco de Dano Existencial à Luz do Direito
Fundamental ao Trabalho Digno
CAROLINA DI ASSIS
(1)
Resumo: A era digital, fruto da mudança do século XX para o século XXI, tem produzido profundos reflexos na vida humana, es-
pecialmente na esfera do trabalho. No âmbito da quarta revolução industrial, a interação entre o sujeito trabalhador e a tecnologia
estimula novos regimes de trabalho, provocando significativos impactos sobre a dignidade humana. Dentre os novos regimes,
encontra-se o teletrabalho, que, embora seja resultado das inovações de séculos anteriores, vem sofrendo grandes transformações
com a indústria 4.0. Por isso, dada a atualidade da temática, propõe-se analisar o padrão civilizatório mínimo que sustenta as rela-
ções de teletrabalho no Brasil, sob o prisma do Direito do Trabalho constitucionalizado. Vislumbra-se, também, realizar um recorte
amostral de decisões do Tribunal Superior do Trabalho, a fim de refletir sobre o cabimento de dano existencial frente à perda de
futuro projeto de vida de teletrabalhadores. Não obstante a dificuldade de comprovar esse dano, é necessário pensar sobre tal
circunstância, uma vez que se tem tornado cada vez mais comum na rotina do trabalhador remoto.
Palavras-chave: Teletrabalho. Quarta revolução industrial. Trabalho digno. Normas brasileiras de proteção trabalhista. Dano exis-
tencial.
Abstract: The digital age, resulting from the change from the twentieth to the twenty-first century, has produced profound re-
flections on human life, especially in the working sphere. In the context of the fourth industrial revolution, the interaction between
workers and technology stimulates new work regimes, causing significant impacts on human dignity. Among the new regimes
is telecommuting, which, although it is a result of previous centuries’ innovations, has been suffering major transformations with
industry 4.0. Therefore, given the theme’s currentness, it is proposed to analyze the minimum civilizing pattern that support
telecommuting relations in Brazil, from the perspective of constitutionalized Labor Law. It is also aimed to carry out a sample of
decisions of the Superior Labor Court, in order to reflect on the fitting of existential damage in face of the loss of future teleworkers’
life project. Notwithstanding the difficulty of proving such damage, it is necessary to think about such a condition as it has become
increasingly common in the remote worker’s routine.
Keywords: Telecommuting. Fourth Industrial Revolution. Worthy labor. Brazilian rules of labor protection. Existential damage.
1. INTRODUÇÃO
Inteligência artificial, plataformas digitais, nano-
tecnologia, big data, robótica. Uma nova era tecno-
lógica, decorrente da última virada de século, vem
provocando profundos reflexos na economia, nos ne-
gócios, nos governos, na sociedade, além de interferir
em todas as esferas da vida humana. Assim, não obs-
tante o mundo tenha assistido, desde a primeira revo-
lução industrial, a uma ampla transformação nas redes
de relações em decorrência do progresso da tecnolo-
gia, a quarta revolução industrial consolida-se como
realidade irrefutável.
290
Direito Fundamental ao Trabalho Digno no Século XXI – Vol. III
Gabriela Neves Delgado
Nesse contexto, como o trabalho personifica uma
das mais relevantes dimensões da vida humana, é im-
portante discutir sobre a íntima ligação que se tem
construído entre o sujeito trabalhador e a tecnologia.
Embora essa ligação suscite inegáveis vantagens, não
raramente provoca adoecimento, quando comprome-
te direitos não patrimoniais do obreiro, como o direito
à desconexão do trabalho, ao descanso, ao lazer, aos
projetos privados e à vida de relações.
O teletrabalho encontra-se no cerne dessa discus-
são, pois apesar de parecer bastante atrativo, pode
gerar incontáveis prejuízos(2). Para evitá-los, seria im-
prescindível que o Direito do Trabalho cumprisse seu
tradicional papel tuitivo, apresentando alternativas às
demandas contemporâneas. Tarefa árdua, uma vez que
os divergentes interesses econômico-sociais, intrínse-
cos ao ordenamento jurídico, com frequência, culmi-
nam em silenciamentos políticos.
No Brasil, as normas que protegem o trabalhador
encontram-se, principalmente, em tratados e conven-
ções internacionais ratificados pelo país, na Constitui-
ção Federal de 1988 (CF/1988) e na Consolidação das
Leis do Trabalho (CLT), sendo que os princípios e valores
presentes na Constituição corroboram com a estrutura-
ção do Direito do Trabalho constitucionalizado. Todavia,
a recente reforma operada na CLT, pela Lei n. 13.467,
de 13 de julho de 2017, contradiz essa estruturação em
muitos aspectos e, por isso, tem fomentado polêmicas
na esfera do Estado Democrático de Direito brasileiro.
Portanto, o presente artigo justifica-se pela atuali-
dade e relevância do tema, posto que o teletrabalho,
recriado no âmbito da quarta revolução industrial,
apresenta sérios desafios para a preservação dos direi-
tos de personalidade do trabalhador, especialmente na
conjuntura neoliberal.
Assim, tendo por marco teórico o direito fundamen-
tal ao trabalho digno(3) e sua ressignificação no bojo das
relações trabalhistas do século XXI, objetiva-se identi-
ficar os desafios enfrentados pelo teletrabalhador face
às novidades tecnológicas e legislativas. A pesquisa
bibliográfica dará suporte à análise, entrelaçando os
conceitos referentes à quarta revolução industrial(4), ao
(2) Neste artigo, será abordado especificamente o teletrabalho no setor privado, que é regulado pela CLT, uma vez que, no setor público, há
orientações que devem estar alinhadas aos princípios da Administração Pública previstos no art.37 e seguintes da Constituição Federal de
1988.
(3) DELGADO, Gabriela Neves. Direito fundamental ao trabalho digno. 2.ed. São Paulo, LTr, 2015.
(4) SCHWAB, Klaus. A quarta revolução industrial. Trad. Daniel Moreira Miranda. São Paulo: Edipro, 2016.
(5) ANTUNES, Ricardo. O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. São Paulo: Boitempo, 2018.
(6) CRARY, Jonathan. 24/7: Capitalismo tardio e os fins do sono. Trad. Joaquim Toledo Jr. São Paulo: Ubu, 2016.
(7) FREUD, Sigmund. Luto e melancolia. Trad. Marilene Carone. Novos Estudos, n. 32, p.128-142, mar. 1992.
novo proletariado da era digital(5), à categoria “24/7”(6)
e à melancolia(7) do sujeito trabalhador. Ademais, vis-
lumbra-se investigar como o Tribunal Superior do Tra-
balho (TST) se posiciona quanto ao reconhecimento de
dano existencial, frente à alegação de perda de futuro
projeto de vida no caso de trabalhadores submetidos
a teletrabalho. Para tanto, será realizado um recorte
amostral das decisões do órgão de cúpula do judiciário
trabalhista que permita uma reflexão preliminar relati-
va à temática.
2. TRABALHO DIGNO EM PERSPECTIVA: QUARTA
REVOLUÇÃO INDUSTRIAL E NEOLIBERALISMO
O contexto de reestruturação produtiva e de refor-
mulação dos padrões de consumo não é novidade no
seio social. Há tempos a sociedade vivencia revoluções
industriais, responsáveis por descontinuar modelos an-
teriormente consolidados em face das novas técnicas
emergentes. Entretanto, as viradas tecnológicas, por si
só, não seriam capazes de promover intensas rupturas
de paradigmas se não estivessem temporal e historica-
mente situadas.
Nesse sentido, a revolução digital que circunda os
indivíduos no século XXI não pode ser analisada em
plenitude, se desconsiderada a política neoliberal que
a envolve e, especificamente, os efeitos dessa interação
para o mundo do trabalho. Assim, é preciso tomar por
base o tripé tecnologia-trabalho-neoliberalismo, a fim
de se compreender como os vínculos entre esses três
elementos se estabelecem no Estado Democrático de
Direito, o qual sustenta a tendência atual ao Direito do
Trabalho constitucionalizado.
O primeiro elemento do tripé, a tecnologia, desen-
volveu-se por fases bem demarcadas. A primeira revo-
lução industrial, ocorrida em fins do século XVIII e início
do XIX, representou o deslocamento da utilização de
força humana para a energia mecânica, transição cujos
efeitos se perpetuam até hoje. Se em um primeiro mo-
mento, a produção foi afetada pela máquina a vapor
e pelas ferrovias, posteriormente ela tomou grandes
proporções com a eletricidade e a linha de montagem,

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