Capítulo 1 - a jurisdição nas fórmulas jurídico-políticas anteriores ao estado

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CAPÍTULO 1
A jurisdição nas fórmulas jurídico-políticas
anteriores ao Estado
1 .1. As sociedades primitivas e a função de julgar
Predomina, em doutrina, o entendimento de que, nos primórdios, na resolução das lides
humanas, a decisão do mais forte era a regra, prevalecendo a autotutela. O con ito individual era
resolvido pela força, de maneira que se impunha ao mais fraco o resultado desejado pelo mais for-
te. Foi assim solucionada, na narração da Bíblia, a desavença entre Caim e Abel, em que o primeiro
não aceitou cumprir a regra do ritual de sacrifícios a Deus e, ao descumpri-la, resolveu matar Abel,
o qual observara o ritual corretamente. Teria sido Caim, segundo o dizer veterotestamentário,
aquele que edi cou a primeira cidade.(42) Conforme o escrito bíblico, o segundo con ito de interes-
ses narrado também foi solucionado com o assassínio do ofensor, por Lameque,  lho de Caim.(43)
Contudo, antes de se debruçarem sobre a solução de con itos, os autores debatem sobre a
vida do homem em sociedade, na sociedade primitiva. O homem é um animal social, segundo
A. Para ele, o homem sem clã, sem lar, é desprezível. O estagirita sustenta que o homem
não é apenas gregário, mas social, pois só ele tem a natureza de indicar o justo e o injusto, a pos-
suir o sentimento do bem e do mal.(44) Para H, o homem, no estado de natureza, é egoísta e
inclinado a agredir os outros, em face de sua insaciedade, o que, nesse estado, condena-o a viver
solitário, de forma animalesca e breve, em uma permanente guerra de todos contra todos.(45)
Em que pese a conclusão de alguns contratualistas(46), predomina nas ciências sociais o
pensamento que parece convergir no entendimento de que, desde sempre, os homens vivem em
sociedade — ideia de sociedade natural. Mesmo os que divergem sobre desde quando o homem
(42) In: Gn 4.17. O texto bíblico chama esta cidade de Enoque.
(43) In: Gn 4. 8-16.
(44) ARISTÓTELES. Política. 2. ed. Brasília: UNB,1988. p. 15.
(45) HOBBES, Thomas. Leviatã ou matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. São Paulo: Martin Claret,
2014. HOBBES aborda o assunto especialmente na Parte I, Capítulo XVII — Das causas, da geração e da de nição de
um Estado. A respeito, HOBBES diz: “Conferir toda a força e o poder a um homem, ou a uma assembleia de homens,
que possa reduzir as diversas vontades, por pluralidade de votos, a uma só vontade, é o único caminho para instituir
um poder comum, capaz de defender a todos das invasões estrangeiras e das injúrias que uns possam fazer aos
outros, garantindo-lhes, assim, segurança su ciente para que, mediante seu próprio trabalho e graças ao fruto da
terra, possam alimentar-se e viver satisfeitos; isso equivale a dizer: é preciso designar um homem ou uma assem-
bleia de homens para representar a todos...”. In: HOBBES, Thomas. Ob. cit., p. 141. Sobre a opinião de Hobbes, ver
DALLARI, Dalmo. Elementos de Teoria Geral do Estado. 32. ed. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 24-5. DALLARI a rma que,
para Hobbes, quanto ao homem, por ser dotado de igualdade, “...cada um vive constantemente temeroso de que o
outro venha tomar-lhe os bens ou causar-lhe algum mal, pois todos são capazes disso”.
(46) Diferentemente pensa LOCKE, para quem “...o estado natural tem uma lei de natureza para governá-lo, que a
todos obriga; e a razão, que é essa lei, ensina a todos os homens que a consultem, por serem iguais e independen-
tes, que nenhum deles deve prejudicar a outrem na vida, na saúde, na liberdade ou nas posses”. In: LOCKE, John.
Segundo tratado sobre o governo. 2. ed. São Paulo: Martin Claret, 2006. p. 24. ROUSSEAU, por sua vez, assevera que
“a mais antiga de todas as sociedades e a única natural é a família. Mesmo assim os  lhos só estão ligados ao pai
enquanto precisam dele para sobreviver. Tão logo cessa tal necessidade, esse vínculo natural se dissolve. Os  lhos,
isentos de obediência que devem ao pai, o pai, isento dos cuidados que deve aos  lhos, voltam a ser igualmente
independentes. Se continuam unidos, não é mais naturalmente, mas voluntariamente, e a própria família só se
mantém por convenção”. In: ROUSSEAU, Jean-Jacques. O contrato social. Porto Alegre: L & M, 2011. p. 24.
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convive em família (para alguns, o homem, por muito tempo, na pré-história(47), viveu em hordas)
concluem que o ser humano sempre viveu em sociedade.(48)
Todavia, dados paleontológicos e paleoetnológicos parecem não ser su cientes para lançar
luz sobre as sociedades humanas na pré-história e os etnólogos entram em cena para trazer os
elementos presentes nas chamadas sociedades selvagens contemporâneas(49), nas regiões bore-
ais (esquimós, iakoutes, tchuktehis etc.), equatoriais (congos, melanésios, australianos, vedas do
Ceilão, mincópios de Andaman, aborígenes da Índia Central), populações nômades (quirguizes,
turcomanos, árabes da Argélia); sedentários (mois da Indochina, cabilas, ossetos do Cáucaso,
sudaneses, polinesianos); povos estacionários do subcontinente indiano e do extremo oriente; e
populações indígenas da América.(50)
Em que pese a concordância da vida gregária, bem como sobre o modo de vida no período
paleolítico, até cerca de 10.000 anos atrás, provavelmente com instrumentos e ferramentas feitos a
partir de pedaços de ossos e pedras e com a primeira divisão do trabalho, em que, talvez, homens
se dedicassem à caça e pesca e as mulheres à colheita de frutos e cereais silvestres (ao que também
se chama apenas de divisão de tarefas, e não de trabalho(51)), pouco se sabe sobre os seus costumes,
que possa conduzir à compreensão da sociedade humana no paleolítico, que não seja enfocado,
sobretudo, pelos estudos das sociedades primitivas de hoje, consideradas estacionárias. Os indí-
genas isolados na América do Sul, por exemplo, que vivem da caça e pesca e da colheita de frutos,
parecem comprovar que os povos que não conheciam a escrita, nem o metal, viviam em grupos
que solucionavam seus con itos, em geral, por meio da separação do infrator do meio social, bem
como, em face da gravidade do delito ou da insubmissão à sociedade, à punição por meio das mais
variadas formas de vingança privada ou coletiva.
Estes traços, ainda encontrados hoje em determinados povos indígenas que usam instrumen-
tos de pedra e de madeira(52), levam a crer que não havia, nas sociedades pré-históricas do paleolítico,
julgamentos por juízes, mesmo que leigos ou sacerdotes, sobretudo das questões não penais.(53)
(47) A expressão pré-história é questionável. BLOCH a rma que não há sociedade fora da história. In: BLOCH, Marc.
Introdução à História. Lisboa: Europa-América, 1997.
(48) O instinto de sociabilidade, nesse viés, é inato. Nesse sentido: ARISTÓTELES. Ob. cit., p. 15; e CÍCERO, Marco Túlio.
Da República: Livo Primeiro, XXVI. In: . Acesso em: 12 set. 2018.
(49) Está-se no campo do chamado Direito Arcaico: o Direito das sociedades de tipo arcaico — “e entre elas
compreendemos também as sociedades “primitivas” ainda existentes que apresentem as características correspon-
dentes — fundamentam-se no princípio do parentesco”. In: LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito I. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 1985. p. 184. LUHMANN, utilizando-se de manancial teórico da História do Direito e da Etnologia
do Direito, com base em uma perspectiva histórica e de comparação cultural, classi ca o Direito em: Direito Arcaico
— povos sem escrita; Direito Antigo — primeiras civilizações urbanas; e Direito Moderno — sociedades posteriores
às Revoluções Francesa e Americana. Ver também: PINTO, Cristiano Paixão Araújo. Direito e sociedade no Oriente
antigo. In: WOLKER, Antonio Carlos (org.). Fundamentos de História do Direito. 2. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2002.
p. 33.
(50) GROPPALI, Alexandre. Doutrina do Estado. São Paulo: Saraiva, 1953. p. 29.
(51) HESPANHA, António Manuel. Ob. cit., p. 61.
(52) Em sua carta, de 1500, Pero Vaz de Caminha descreve os indígenas do primeiro contato português, no desco-
brimento do Brasil, já assim, sem metais e, praticamente, sem agricultura, salvo a cultura da mandioca. In: A Carta de
Pero Vaz de Caminha. Ministério da Cultura — Fundação Biblioteca Nacional — Departamento Nacional do Livro.
In: . Acesso em: 28 nov. 2015. Sobre uma etnogra a mais recente dos indígenas da Ama-
zônia, no início do século XX, que demonstra que as condições eram as mesmas referidas na Carta de Pero Vaz de
Caminha, ver: TASTEVIN, Constant. Coletânea de textos. In: FAULHABER, Priscila; MONSERRAT, Ruth (Orgs.). Tastevin
e a etnogra a indígena. Petrópolis: FINEP, 1987.
(53) HESPANHA fala que, diferentemente do que muitos contratualistas pensam, os homens desde as sociedades
primitivas pré-históricas convivem em sociedade de um modo bastante regrado, nas quais o direito (consuetudi-
nário) abrange os pormenores da vida familiar, em que o indivíduo encontra-se numa emaranhada rede de direitos
e deveres. O autor aponta a proibição do incesto como uma regra já deste tempo. Ademais, a rma que, com base
em Platão, a literatura grega já informa que no extremo ocidental do Mediterrâneo, em meio ao povo chamado
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Nas mais graves — penais, estas eram solucionadas pela vingança privada(54) ou coletiva, com a
morte, abandono ou expulsão do infrator. Nas sociedades pré-históricas em que os homens eram
nômades e viviam da caça e pesca, ao que parece, a solução dos con itos se dava muito por frag-
mentação do grupo. Sem apego à propriedade, por razões óbvias, o litígio levava ao abandono do
“rebelde” à sua própria sorte ou à fuga, para evitar sanções de acordo com os costumes do grupo,
e, muitas vezes, à morte. O excluído tentaria sua sorte em outro grupo, poderia voltar depois de
um tempo de exclusão e ser aceite novamente ou morrer diante das intempéries.
No período neolítico (até cerca de 5.000 anos a.C.), que se inicia com a revolução agrícola,
os arqueólogos indicam que, provavelmente, um clima mais seco e, por vezes, árido, na região
hoje chamada Curdistão e Iraque, exigiu uma maior participação da mulher no trabalho, a criar
animais e a cultivar cereais até então silvestres. Nesse período, com a sedentarização, surgem as
aldeias e, em um determinado momento, as cidades, e se inicia, provavelmente, há sete mil anos,
o uso de metais, inclusive do bronze.
No neolítico, B assegura que pesquisas arqueológicas na região da Baixa Mesopotâmia
(escavações) comprovaram(55) que a comunidade aldeã neolítica era organizada de maneira bas-
tante simples. Os chefes das diferentes famílias que constituíam a aldeia tinham o poder decisório
(anciãos). Na aldeia neolítica, as atividades, inclusive as não diretamente ligadas à produção de
alimentos, como a tecelagem e a cerâmica, eram realizadas pelas famílias, que eram, sobretudo,
unidades produtoras de alimentos. Essa economia, designada de economia do tipo oikos (sumério
= casa), era, essencialmente, de subsistência, baseada na reciprocidade.(56)
Também aqui as sociedades estacionárias de hoje podem iluminar a compreensão, por meio
do estudo de povos em situações semelhantes nos dias atuais ou, ainda que extintos, que foram
pesquisados por historiadores ou etnólogos no tempo em que ainda existiam. Assim, certos po-
vos sedentários, como povos indígenas da América do Sul, trazem elementos que demonstram o
recurso a meios de solução de con itos que não a mera vingança privada sem a submissão do in-
frator a um juiz (chefe ou sacerdote, ou a um conselho). Um processo costumeiro tribal de análise
da situação, para a posterior aplicação da pena, parece ser a regra, ainda que tal exame seja feito,
praticamente, de imediato à ocorrência do fato.
Em verdade, a sedentarização leva a uma convivência necessária entre as pessoas da aldeia.
O modo de vida sedentário exclui, praticamente, as hipóteses f requentes de divisões, com a saída,
expulsão ou fuga do infrator e suas famílias para a exploração de outras áreas da  oresta, para
caçar ou pescar, distanciando-se do grupo que integravam (forma de solução do problema no
Atlantes, reis-juízes aplicavam o direito, sendo que o juiz também se confundia com o sacerdote. In: Ob. cit., p. 66-7.
(54) KELSEN a rma que, na origem da sociedade, esta “não conhece outras sanções que as religiosas, ou seja, as que
emanam de uma entidade sobre-humana. Apenas mais tarde, pelo menos dentro do grupo mais estreito, apare-
cem, lado a lado com as sanções transcendentais, as sanções socialmente imanentes, ou seja, organizadas, sanções
a serem executadas por um indivíduo determinado pela ordem social de acordo com as disposições dessa ordem.
Nas relações entre diferentes grupos, a vingança de sangue aparece bem cedo como uma reação socialmente
organizada contra um dano considerado injusti cado e atribuível a um membro de um grupo alienígena. O grupo
do qual parte essa reação é uma comunidade baseada numa relação de sangue. A reação é induzida pelo medo da
alma da pessoa assassinada. Aparentemente, esta última não pode se vingar de seu assassino, caso ele pertença a
um grupo alienígena. Portanto, ele compele seus parentes a executar a vingança. A sanção organizada socialmente
desse modo é ela própria garantida por uma sanção transcendental. Os que fracassam em vingar a morte de seu pa-
rente na pessoa do assassino estrangeiro e de seu grupo são ameaçados com doença e morte pela alma do homem
assassinado. Ao que tudo indica, a vingança de sangue é a mais antiga sanção socialmente organizada”. In: KELSEN,
Hans. Teoria geral do direito e do Estado. São Paulo: Martins Fontes, 1990. p. 23-4.
(55) BOUZON, Emanuel. Propriedade e economia na antiga Babilónia até ao império de Hammurabi. In: Revista do
Instituto Oriental da Universidade de Lisboa, 2003, n. 13, p. 27. O autor menciona que existe abundante documenta-
ção encontrada nas escavações, com um grande número de tábuas de argila.
(56) Ob. cit., p. 27-8.

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