Capítulo 2 - a jurisdição e sua importância para a formação do estado, para a sua constituição e para a regulação da economia

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CAPÍTULO 2
A jurisdição e sua importância para a formação
do Estado, para a sua Constituição e para a
regulação da economia
2.1. O desenvolvimento jurídico-político a partir da jurisdição e o
surgimento do Estado
A análise da jurisdição nas principais fórmulas jurídico-políticas que se destacaram na his-
tória parece revelar que estes sistemas tiveram sua estrutura delineada, em grande parte, pelo
modo com que a jurisdição se desenhou. Na polis (cidade-estado grega), na civitas ou na res publi-
ca romanas, ou mesmo no dominium feudal, a organização jurisdicional estruturou a sociedade,
conduzindo à sua estabilidade, à sua expansão ou à sua fragmentação.
Nada obstante, a estabilidade possibilitada pelo modelo jurisdicional grego — garantida por
um sistema de maior participação direta; a monumental estrutura jurisdicional romana e a sua
incidência em vastos territórios e sobre extensas populações; e a jurisdição fragmentada do feuda-
lismo não foram capazes de alcançar o sistema jurídico-político de nido como Estado.
O Estado parece ter surgido de um amálgama, em que fatores históricos, sociológicos,
jurídicos e políticos se entrecruzaram, permeados pela função jurisdicional, em um sistema ju-
rídico-político que representou uma nova realidade, capaz de viger sobre grandes populações e
amplos territórios, em uma unidade jamais vista até então.
Nesse contexto, a jurisdição, que estabilizou a cidade-estado, fez existir o Império e fossilizou
o feudalismo, ganhou contornos diferenciados, inovou-se, para fazer surgir uma nova forma de
organização política, de início, o Estado Nacional, e, mais adiante, revolucionou-se, para gerar ou
ser fator imprescindível para a formação do Estado Constitucional.
O Estado Nacional caracteriza-se pela ligação direta entre o súdito e o centro decisional, com
a concentração do poder na pessoa do rei, que se utiliza de órgãos, em especial dos tribunais reais,
que substituíram, progressivamente, a administração feudal. Por sua vez, o Estado Constitucional
é aquele que, nada obstante centralizado e uni cado o poder, tem limites de nidos na Constitui-
ção, que estabelece a separação dos poderes (funções essenciais) como garantia maior dos direitos
dos cidadãos.(280)
Neste capítulo, serão enfocados fatores históricos e destacados aspectos relevantes para o
surgimento do Estado, com acento na jurisdição, que representou ponto relevantíssimo para a
formação do Estado. Iniciar-se-á pelo exame da jurisdição no Estado Nacional, prosseguir-se-á
destacando-se a jurisdição no Estado mais desenvolvido jurídico-politicamente que se conhece,
o Estado Constitucional e, por  m, acentuar-se-ão desdobramentos da jurisdição no Estado, em
razão da regulação da economia, uma nova nuance da jurisdição, no chamado Estado Regulador.
(280) MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. Tomo I — Preliminares: o Estado e os sistemas constitucio-
nais. 6. ed. Coimbra: Coimbra Editora, 1997. p. 78-87.
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2.2. A formação do Estado Nacional
2.2.1. Início do escorço
O estudo da formação do Estado, por certo, inicia-se ainda dentro da Idade Média. Em
verdade, esta confusão entre fases históricas, até por força de transições, também aconteceu em
relação ao que seja mesmo Idade Média. Os historiadores apontam que o início da Idade Média se
deu com a queda do Império Romano do Ocidente, em 476 d.C., quando Roma foi tomada pelos
hérulos. Este acontecimento é o marco inicial da Idade Média.
Todavia, como bem aponta H, a partir do século III, o Império Romano, em razão
da crise econômica nas cidades, estabeleceu uma política, inclusive na Península Ibérica, de explo-
ração de grandes domínios, com a substituição do trabalho dos escravos pelo trabalho de colonos
— homens livres, que se ligavam por laços pessoais ao latifundiário. Muitos desses homens livres,
a partir de então, vão se despojar da sua situação de independência — angustiada ante a penúria
em que viviam os cidadãos pobres —, passando a uma que consideravam bem mais tranquila: a de
dependência em relação ao latifundiário, ao optarem pela posição social de colonos, trabalhando
nos latifúndios.
A crise foi agravada pelas primeiras invasões germanas, que se generalizam, retraindo o
comércio e a economia monetária e havendo mais migração para o campo. O Império Romano
foi afetado, de modo que não podia mais manter por si a administração e a defesa em toda a sua
extensão a contento, o que o obrigou a entregar certas tarefas e poderes aos potentados locais
— donos de grandes extensões territoriais. É exatamente aí que vai se gestar uma nova ordem
econômica e social — o sistema feudal, baseada:
a) no colapso da economia urbana, comercial e monetária; b) avanço da economia
rural, agrícola, de autoconsumo; c) deslocamento dos centros políticos e sociais
regionais da cidade para o campo; d) degradação do poder central e fortalecimento dos
polos periféricos; e) progresso do estado servil (ou colonato) — quer por servilização
dos homens livres, quer por emancipação dos escravos — e, consequentemente, das
relações pessoais de dependência.(281)
É que as datas de início das chamadas Idades(282) não correspondem, nem poderiam corres-
ponder, com exatidão às datas das mudanças econômicas, sociais e políticas reais. Esse sistema
novo, que começou a se con gurar no século III e se consolidou nos séculos seguintes, chamado
feudal, tinha como fundamento da sua estrutura jurídico-política a relação senhor-vassalo. Esta
era a célula básica. A relação abstrata poder político-súdito não existia no feudalismo. Os roma-
nos, antes mesmo da queda do Império, começaram a ver se esbaterem as diferenças, para eles tão
nítidas, entre os poderes públicos e os privados. Estes decorrentes da propriedade e dos pactos. Os
vínculos políticos passariam a ser pessoais ( delidade) e patrimoniais (quem é dono é o senhor:
tem poder — poder patrimonial na titularidade de um detentor), sem monopólio de um único
(281) HESPANHA, António. Ob. cit., p. 71-2. Por esta razão, uma vez que as condições acima já se faziam presentes
desde antes da queda do Império Romano do Ocidente, HESPANHA assegura que o período feudal começou, em
verdade, no século III d.C. In: Ob. cit., p. 42.
(282) ECO assegura que a Idade Média “é o período que começa quando o Império Romano se dissolve e que,
fundindo a cultura latina, tendo o cristianismo como aglutinante, com a dos povos que pouco a pouco foram inva-
dindo o Império, dá origem ao que hoje chamamos Europa, com as suas nações, as línguas que ainda hoje falamos
e as instituições que, apesar de mudanças e revoluções, são ainda as nossas”. Segundo ele, “devemos, pois, tratar a
história da Idade Média na convicção de ter havido muitas idades médias”. In: ECO, Umberto (Direção). Idade Média:
bárbaros, cristãos e muçulmanos. Capítulo Introdução à Idade Média. 3. ed. Alfragide: Dom Quixote. 2014. p. 12-3.
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centro de poder. Com isso, prolifera-se a desigualdade jurídica entre as pessoas, com a pulveriza-
ção da ordem jurídica, em razão das pessoas e coisas (lugares). Os costumes(283), os estatutos e as
leis eram sempre voltados a garantir o direito dos centros de poder (propriedades). A autoridade
confunde-se com a propriedade e os costumes locais e os forais (leis especiais) estabeleciam pri-
vilégios. Os únicos titulares de direitos e deveres no plano político são os senhores, membros das
classes feudais, sendo os demais representados por eles.(284)
Assim como o início da formação do sistema feudal se deu ainda na Idade Antiga, por seme-
lhante modo, a formação do Estado nacional foi se dando, também, passo a passo, dentro da Idade
Média. Por óbvio, o regime feudal é um sistema antagônico ao sistema jurídico-político do Estado
centralizado. Nada obstante, a partir do século XII, as sociedades europeias foram se afastando do
tipo feudal, que não morreu completamente e teve prolongamentos.(285) Depois do século XII, os
feudos vendiam-se ou cediam-se livremente.(286)
Acima mencionou-se, no capítulo anterior, a formação de áreas mais extensas na Europa,
com mais unidade interna. Esses espaços mais amplos eram conhecidos como territórios con-
suetudinários, obra de cristalização já bem avançada no início do século XIII. Como se disse
alhures, havia, nessa fase, uma competição restrita pelo controle do poder político dentro de um
certo território, em que poucas Casas ou famílias, na França, todas, praticamente, descendentes
Capetos, podiam ameaçar o poder constituído nesses domínios. As lutas eliminatórias neles dimi-
nuíram consideravelmente, sendo mínimas as possibilidades de alguém, fora dessas linhagens que
dominavam esses territórios, conquistá-los. Da mesma forma, os que estavam no controle desses
territórios, também, tinham poucas possibilidades de conquistar novos domínios ou mesmo de
ampliar o que já possuía.
Em verdade, um clima de maior segurança jurídica foi permitindo, como se viu, de algum
modo, no  nal do capítulo anterior, uma maior unidade, em que teve especial in uência a função
jurisdicional, redundando, a seguir, em um processo longo de aperfeiçoamento no decurso de
séculos. Nesses territórios maiores, cristalizados, ainda em tamanho médio, essa segurança, sem
maiores encastelamentos, permitiu o intercâmbio e uma unidade numa dimensão superior — mé-
dios territórios. O aumento da população e das relações entre as pessoas, nessa área de segurança,
foi trazendo desenvolvimento econômico.
2.2.2. O entrelaçamento dos estamentos e o evolver político
Examinando-se o evolver jurídico-político francês, após o surgimento de um poder prin-
cipesco mais concentrado, inicia-se o desenvolvimento em direção ao reino. O processo de
monopolização do poder exigia uma conformação jurídico-política da sociedade baseada na di-
visão de funções. O rápido aumento da divisão de funções que ocorreu com a Casa principesca
monopolista fez com que esta se tornasse dependente de outras funções. Enquanto o território se
une, em torno de centros hegemônicos, em uma forma, de início, de tipo federativo, os segmentos
sociais, em estamentos, as classes funcionais se juntam em uma certa cooperação. As tensões entre
(283) Era comum, também, o senhor  xar, por meio de uma ata, os costumes de um lugar. In: BLOCH, Adolf. Ob. cit.,
p. 325.
(284) HESPANHA, António. Ob. cit., p. 40-3.
(285) BLOCH, Adolf. Ob. cit., p. 514. A Inglaterra foi abolindo primeiro as regras do sistema feudal. No século XVII,
com a primeira revolução, aboliu todas as distinções entre os feudos dos cavaleiros e as outras tenures de foreiros.
Na França, subsistiu o sistema até as vésperas da Revolução Francesa. In: BLOCH, Adolf. Ob. cit., p. 523-4. HESPANHA
a rma que o regime feudal teria se prolongado, em alguns de seus aspectos, até o século XIX, na Península Ibérica.
In: HESPANHA, António. Ob. cit., p. 42.
(286) BLOCH, Adolf. Ob. cit., p. 249.

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