Capítulo 6 - A jurisdição e a unidade jurídico-política internacional

Páginas333-396
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CAPÍTULO 6
A jurisdição e a unidade
jurídico-política internacional
6.1. A formação da jurisdição no plano internacional e suas perspectivas
São vários os caminhos que a jurisdição está a percorrer no plano internacional: em instân-
cias públicas, privadas e mistas; judiciais e arbitrais; na cooperação entre Estados; na integração
supranacional; e na esfera da regulação. Esta formação aponta para a unidade? Ou melhor, a aná-
lise da jurisdição revela um caminho para uma unidade jurisdicional no plano internacional? Esta
interligação da jurisdição pode implicar numa unidade das demais funções essenciais do poder
político internacional.
A pluralidade de ordens, com uma pluralidade de plexos normativos, que existem na esfera
internacional, está a impor uma necessária fragmentação da jurisdição? Esta fragmentação é uma
tendência(1137) ou, em outras palavras, o cerne da razão do desenvolvimento da função jurisdicio-
nal no plano internacional?
A seguir, procurar-se-ão analisar esses problemas, que se a guram como intrincados. De
início, de um modo mais sintético e sistemático, expor-se-ão como e onde a jurisdição está se
formando, com base nas análises anteriores. Depois, abordar-se-ão aspectos, partindo-se da cons-
trução efetuada pela Teoria Geral do Direito, em especial da chamada teoria pura, com algum
enfoque em seus desdobramentos, bem como analisar-se-ão as formulações a respeito efetua-
das por juristas funcionalistas, para procurar um caminho para a integração, uniformidade ou
unidade jurídico-política, com ênfase na jurisdição. Ao  nal, tentar-se-á analisar a perspectiva
de desenvolvimento de uma unidade da jurisdição no plano internacional, acentuando-se o seu
modo de construção, em rede, o que parece estar a se dar no presente tempo.
6.2. A jurisdição internacional e a formação do sistema jurídico-político
global: alguns de seus contributos fundamentais
Com base em tudo o que foi analisado até aqui, é irrefutável o papel da jurisdição no existir
e no evolver das fórmulas jurídico-políticas, em verdade, para o da humanidade mesma, desde
tempos remotos. Os autores concordam em dizer que o estabelecimento da função de julgar foi
fundamental para que o homem saísse de um estado em que predominava a vingança privada para
um estágio em que seus con itos passaram a ser de nidos, com alguma organização, nas gens e
nas tribos, por pessoa ou grupo de pessoas que davam a solução da disputa, como garantia da paz.
Após períodos de con itos sem resolução ou mesmo de relações continuadas no tempo sem meios
de de nição da solução de con itos, exatamente para que estas relações continuassem a existir,
evitando-se a guerra, a violência ou o rompimento, são estabelecidas fórmulas de estruturação da
função de julgar que permitem a continuidade e o desenvolvimento das interações entre pessoas,
(1137) RAMOS aponta a fragmentação como uma característica do presente estado das instituições jurisdicionais
internacionais. In: RAMOS, Rui Manuel Moura. Introduction. In: VICENTE, Dário Moura (Ed.). Towards a universal jus-
tice? Putting international courts and jurisdiction into perspective. Leiden/Boston: Brill Nijho , 2016, p. 4-5.
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grupos de pessoas e até entre nações. A organização dessa função, nesse sentido, parece ter sido a
primeira forma de autoridade conhecida.(1138)
A estruturação da função de julgar, que ocorreu, portanto, cedo na história, ou ainda na
pré-história da humanidade, tem permitido construções sociais mais aprimoradas, como as cha-
madas cidades, em que, de início, o Direito costumeiro imperava, nas quais não havia legislador,
nem poder executivo nos padrões atualmente conhecidos, em que um rei aparecia com funções
judicantes de causas maiores, e possibilitava a unidade so cial, em um período histórico em que esta
gura — o rex — era mais um entre os outros pater familias, embora, em razão dessa função que se
tornou proeminente, ser chamado como primus inter pares. Ao que parece, semelhantemente, nos
dias atuais, centros internacionais de poder vão se formando, ou pelo menos se desenvolvendo, em
torno de unidades de jurisdições — em particular de arbitragem. Em volta deles, parecem operar
os atores envolvidos em uma atividade ou com um interesse em alguma matéria, que se relaciona
a este centro.
Com a aproximação entre as cidades, a jurisdição continuou a exercer papel decisivo, a ponto
de permitir a paz, uma vez que tribunais foram de nidos para permiti-la, o que levou à criação
de autoridades com maior extensão de poder e ao aparecimento de fórmulas políticas mais de-
senvolvidas. Na época dos Impérios, em especial da mais distante Antiguidade, a jurisdição se
caracterizava pela preservação do processo decisional das lides pelo Direito do povo conquistado
— e também por suas autoridades judiciárias (locais), e isso foi um fator decisivo para uma maior
respeitabilidade do poder imperial, que era exercido sobre cidades-estados, as quais, em geral,
possuíam Direito costumeiro e um rex que recebeu poderes que se concentraram com o tempo
e por tradição, em especial para dar segurança, para a organização para a guerra e com a função
original de julgar causas maiores. O Império surgiu como um novo centro jurisdicional — com
cidades-estados com seus reis em sua extensão — para decisões mais importantes ainda e agiu,
em princípio, como preservador das culturas de cada região, permitindo-lhes ter a sua própria
jurisdição. As primeiras leis escritas parecem ser compilações daquilo que, geralmente, os juízes
decidiam, como o chamado Código de Hamurabi, em uma época em que os juízes eram árbitros
e pessoas comuns (não o ciais). Assim, de alguma forma, por tribunais arbitrais, nos dias de hoje,
está a se formar o Direito, sobretudo no domínio da Lex Mercatoria.
O Império Romano também foi um sistema jurídico-político em que a jurisdição preservou
as características apontadas, sobretudo das jurisdições locais, todavia, terminou por consolidar-
-se um sistema em que a função de julgar se aprimorou, por meio de uma justiça o cial e de um
processo caracterizado pelo contraditório e pela ampla defesa, em uma feição mais desenvolvida.
O Direito dos estrangeiros foi delineado, destacando-se o necessário acesso à jurisdição, que foi
a marca de seu desenvolvimento. À semelhança desse avanço, destaca-se o modo plural dos dias
atuais, de respeito às jurisdições locais, nacionais, regionais e, de forma plural, às cortes com com-
petências em várias matérias, em parte do globo, o que parece facilitar a integração e a convivência
pací ca entre os povos, e até mesmo dentro dos territórios de Estados nacionais.
Na Idade Média, vê-se que a jurisdição se sedimentou e teve, quiçá, como característica má-
xima, sua fragmentação, sendo o poder de julgar dividido em unidades territoriais sem  m, sem
que existisse, em princípio, uma ligação forte entre estas unidades. A jurisdição fossilizou o sis-
tema medieval, conservando-o fragmentado. Somente com as mudanças ocorridas na jurisdição,
em especial com a transformação da jurisdição comum em justiça do rei na Inglaterra e as pos-
sibilidades recursais na França, por exemplo, com acesso às cortes, os reis, que tinham controle
praticamente sobre os territórios apenas de s eus próprios feudos, vislumbraram a possibilidade de
dominar todas as terras de seu reino, que, de início, era somente um território sujeito à honorabi-
(1138) BENSON, Bruce L. Justicia sin Estado. Madrid: Union Editorial, 2000. p. 26 e seguintes.
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lidades, e que só alcançava unidade em períodos de guerra, ou pela atividade judicial do rei quanto
às chamadas causas maiores. A modi cação do sistema judicial os fez perceber que, da mesma for-
ma que a Justiça havia se interligado, em cadeias hierárquicas, guardadas as devidas proporções,
outros aspectos também poderiam ser uni cados, como a tributação.
Nada obstante, a forma de organização da jurisdição feudal original e tradicional, que per-
durou praticamente por toda a Idade Média, em unidades paralelas, assemelha-se, em parte, à
organização do sistema jurídico internacional atual, em que a jurisdição, de modo quase que com-
pletamente independente, atende ao centro jurídico ao qual se relaciona, de modo fechado, sem
nenhuma ligação com os outros. A regulação, também, parece estar caminhando assim na esfera
internacional, com uma organização jurisdicional interna, em um complexo regulatório, em que
as três funções essenciais ao Estado estão presentes, estruturando-se a função jurisdicional de ma-
neira independente. Ainda não se assistiu, pelo menos no plano internacional em toda a terra, a
ligação, por meio de cortes com uma jurisdição compulsória mais ampla(1139) e jungida a um órgão
superior hierarquicamente, no plano internacional, o que é uma reivindicação antiga dos autores
de Direito Internacional Público.
Durante a Idade Média, assim, os requisitos para o surgimento do Estado Nacional se com-
pletaram quando houve a uni cação da função jurisdicional. O Estado Nacional, deste modo, se
con gura como aquele que tem a jurisdição uni cada de baixo para cima, de forma independente,
mesmo que, ainda, o rei, em princípio, a ela estivesse praticamente imune. É uma característica da
jurisdição, praticamente desde sempre, esta independência e imparcialidade, mesmo que vícios
possam ser enfocados, este existir não in rma a regra. O acesso à jurisdição independente, pro-
movida pelos pares, árbitros ou juízes imparciais, era a liberdade existente desde cedo na história
humana, desde a Idade Média, ou mesmo antes, no tempo dos Impérios.
Em verdade, o incremento e o aperfeiçoamento do Estado Nacional, com a Constituição,
também na jurisdição se escorou, já que a chamada separação dos poderes veio a sedimentar a
separação das funções essenciais do Estado, em que a jurisdição ganhou mais independência (não
supremacia) ainda quanto às demais. O Judiciário, ou a organização da jurisdição, que já garantia
o direito ao processo (daquele tempo) às pessoas em con ito entre si desde cedo no Estado Na-
cional, e mesmo antes, como já se viu, e assim lhe deu característica, recebeu mais a atribuição de
salvaguardar os direitos dos indivíduos inclusive contra o rei, ou seja, contra o Estado. O Estado
Constitucional teve como uma de suas características principais a de que a jurisdição também
controlaria o rei, garantindo o direito dos cidadãos previsto na Constituição, con gurando-se, a
partir de então: o Estado da separação dos poderes (das funções, em órgãos de nidos).
A evolução do Estado Nacional, após os aportes que lhe foram trazidos pelo Direito da Ingla-
terra e da França, em particular com o sistema de freios e contrapesos e a estruturação de maneira
independente das funções essenciais do Estado, veio a ter grande contribuição americana, a partir
do controle de constitucionalidade das leis. Esta de nição deu ao Poder Judiciário importante
acréscimo de função, uma vez que passou a ser responsável por papel relevantíssimo no Estado
Constitucional, que pautou a evolução democrática moderna por décadas e ainda tem, hodierna-
mente, relevância fundamental na garantia dos direitos dos cidadãos no plano interno e na e cácia
da Constituição, como fator de unidade de cada nação, ao desempenhar, o Judiciário, a jurisdição
constitucional. O Tribunal Constitucional, responsável pela Justiça Constitucional, é, como diz
C, a pedra angular de todo o sistema jurisdicional nacional, ou seja, de todos os demais
juízes e tribunais dentro do território do Estado.(1140)
(1139) O´CONNELL, Mary Ellen; VANDERZEE, Lenore. The history of international adjudication. In: ROMANO, Cesare
P. R., ALTER, Karen; SHANY, Yuval (Eds.). The Oxford Handbook of International Adjudication. Oxford: Oxford University
Press, 2014. p. 41.
(1140) CORREIA, Fernando Alves. Justiça constitucional. Coimbra: Almedina, 2016. p. 123.

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