Capítulo 3 - O papel da jurisdição na estruturação da Sociedade Internacional

Páginas191-235
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CAPÍTULO 3
O papel da jurisdição na estruturação da
Sociedade Internacional
3.1. Jurisdição, relações internacionais, cooperação e Direito Internacional
O Direito Internacional(586)é o conjunto de normas que regulam as relações entre os Estados”.
Esta de nição de Direito Internacional consolidou-se após longo percurso histórico e efetivou-se
bastante tempo após a consagração do Estado nacional, que não reconhecia nenhuma autoridade
acima de si. Em razão dessa pretensão internacional publicista, as normas jurídicas que regulam as
relações internacionais ganharam caráter original que as diferencia das normas de Direito interno.
Enquanto no Direito interno os sujeitos de direito estão debaixo de um poder que estabelece
as normas, ou pelo menos as mais importantes, da sociedade nacional, no Direito Internacional
Público, os Estados, sujeitos de Direito Internacional, promulgam, em comum, a regulamenta-
ção que lhes exprime o interesse conjunto. Assim, o Direito Internacional, segundo D, é um
Direito de coordenação, que favorece a cooperação entre os Estados. Não há, em princípio, uma
autoridade de sobreposição entre eles, que se unem voluntariamente, sendo soberanos na avalia-
ção de seu próprio Direito. Assim é que, na ONU, os Estados esperam preservar a sua soberania
no próprio seio da Associação, sendo este o sentido do art. 2º da Carta, fundada no princípio da
igualdade soberana de todos os seus membros(587) — mais de 190, hoje.
Na marcha até a consolidação de um Direito Internacional Público de coordenação, longo
caminho andou a humanidade, a começar por um percurso quase sem  m em que houve apenas
uma “sociedade” relacional, na qual as unidades jurídico-políticas somente estabeleciam uma co-
municação mais intensa em situações extremas, relativas às fronteiras e à guerra, e, depois, em
face das relações comerciais e dos interesses privados transnacionais. Nessa fase, as soluções dos
con itos entre as nações se davam de modo limitado por negociações diplomáticas diretas, para o
alcance de acordo entre os litigantes, ou por auxílio de nação amiga dos Estados con itantes, que
faziam gestões com os seus bons ofícios, ou ainda, excepcionalmente, por arbitragem internacio-
nal, na solução de casos esparsos, em formações ad hoc.
Como se disse na Introdução desse trabalho, a expressão jurisdição signi ca a função de
solucionar litígios, in casu, na esfera internacional, seja por órgãos judiciais ou não, públicos ou
privados, permanentes ou ad hoc, desde que reconhecida a juridicidade do seu exercício. É, assim,
a função de julgar, no plano internacional, dos con itos entre Estados, entre privados, ou entre
privados e Estados (e vice-versa), para a resolução de nitiva de uma controvérsia.
Nada obstante os avanços até se chegar a um Direito Internacional Público de coordenação,
em que os Estados passaram a considerar, no plano internacional, uns aos outros, como formal-
mente iguais, não houve, por muito tempo, como mencionado, a evolução das fórmulas pací cas
de solução de controvérsias interestatais, com a ausência de qualquer tribunal ou órgão jurisdi-
(586) DUPUY, René-Jean. O direito internacional. Coimbra: Almedina, 1993. p. 6. DUPUY a rma que “a expressão
Direito Internacional está empregue em conformidade com a linguagem corrente e respeita essencialmente ao
Direito Internacional Público”. In: Ob. cit., p. 5.
(587) Ob. cit., p. 6 e 111
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cional permanente no plano internacional para dirimir as disputas entre os Estados, em qualquer
área das relações internacionais, como se verá no decorrer deste capítulo e se acenturá mais à
frente, o que perdurou até chegar o sécu lo XX.
Em que pese este aspecto: inexistência de órgão jurisdicional permanente para resolver con-
itos entre os Estados durante muito tempo, desde séculos atrás, em especial na Europa, as relações
comerciais entre privados no plano internacional foram alavancadas por sua própri a jurisdição, não
estatal e não pública, na órbita internacional. Ademais, nações tiveram uma grande aproximação
entre os seus nacionais, que mantinham contatos, os mais variados, entre si. Estas relações evoluí-
ram muito cedo, o que levou à existência de um costume entre os Estados europeus, para a solução
pací ca dos con itos provenientes destas relações individuais. Para isso, passou-se a reconhecer,
no plano interno, sentenças estrangeiras relativas a direitos privados, por meio de relações diplo-
máticas, e foi sendo facilitado o acesso à justiça nacional ao estrangeiro, em questões patrimoniais
ou privadas, o que, em um plano mais amplo, trouxe alguma paz entre as nações.
A chamada cooperação judiciária internacional, ou seja, o reconhecimento e cumprimento
de atos judiciais estrangeiros em solo nacional, mesmo que feita por intermédio da diplomacia,
representou a primeira forma de aproximação comum e continuada no tempo no que diz respeito
a atos estatais, com caráter internacional e jurisdicional.
Ainda que quanto a relações no plano individual entre nacionais de Estados diferentes, cada
vez mais a se desenvolver, em razão da jurisdição que de alguma forma lhes amparava, a apro-
ximar, faticamente, as nações europeias e a criar laços cada vez maiores, a resistência, no plano
direto entre os Estados, continuou por muito tempo, a ponto de não permitir o surgimento de
mecanismos permanentes de solução de con itos nesse prisma.
Após a sociedade internacional alcançar o período da predominância de uma considerável
cooperação direta entre os Estados, para além da mera cooperação judiciária, no sentido de uma
cooperação maior em várias direções no plano internacional, a partir, em especial, da criação da
ONU, fórmulas de solução pací ca de controvérsias entre os Estados começaram a surgir com
intensidade no plano internacional e parecem apontar, mesmo com avanços e recuos, para um
sistema universal, destacando-se a criação de órgãos permanentes de solução de controvérsias, em
algumas matérias, no âmbito internacional, entre Estados.
Neste capítulo, enfatizar-se-á o papel da jurisdição para a estruturação da sociedade in-
ternacional, com ênfase na importância da cooperação judiciária para a evolução do Direito
Internacional e nas primeiras formas de jurisdição direta entre os Estados.
Até se chegar à existência de unidades jurisdicionais permanentes na esfera internacional,
a humanidade percorreu um longo caminho, em que a jurisdição teve participação nesse evolver
de um modo decisivo, seja por sua ausência ou não desenvolvimento no plano internacional, a
não permitir a evolução da interação entre os Estados, seja pela sua maior utilização nesse plano,
sob outras nuances, a possibilitar alguma unidade internacional e o relacionar entre as nações,
mesmo que meramente entre nacionais de Estados distintos. É o que se verá abaixo, ao analisar-
-se, sinteticamente, a história da jurisdição internacional até o nascimento das primeiras fórmulas
internacionais permanentes e o estágio atual da cooperação judiciária internacional.
3.2. A jurisdição nos primórdios das relações internacionais
Os autores abordam os antecedentes mais remotos do Direito Internacional Público, em aná-
lise feita pela História do Direito Internacional, por meio de doc umentos bastante antigos, a saber,
os tratados celebrados entre as cidades-estados da Mesopotâmia.(588) Sdiz que foi um solene
(588) MACHADO, Jónatas. Direito internacional público. 4. ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2013. p. 57.
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tratado, assinado entre os governantes de Lagash e Umma, inscrito em um bloco de pedra, por
meio do qual se estabeleceu a de nição das fronteiras, o mais antigo documento de Direito Inter-
nacional, datado, aproximadamente, de 2100 a.C.(589)
Os primeiros tratados tinham por objetivo o  m de guerras, com a de nição de fronteiras e
de encargos impostos aos vencidos. Exemplos desses são citados na Bíblia. Era comum Israel es-
tabelecer a paz, com povos vizinhos, que se tornavam seus vassalos, ou em relação aos quais Israel
se tornava tributário — Amom, Moabe e Edom. Por outro lado, há tratados com o Egito ou até
mesmo com povos distantes de Israel — Assíria, para pôr  m às guerras ou evitar invasões, com
o estabelecimento de tributação em favor de um dominador que vencia a Israel em determinada
guerra, ou mesmo estabelecendo aliança militar, o que representa reminiscências do Direito Inter-
nacional relativas a Israel, em períodos remotos da História.(590)
Nesses tempos, como se disse, o Direito Internacional se cingia ao estabelecimento do tér-
mino de guerra, sobretudo, por meio de tratados, com a  xação de fronteiras, quanti cação de
indenizações de guerra (tributos) e envolvendo, provavelmente, a devolução de prisioneiros
de guerra, não havendo, propriamente, uma prática de cooperação entre os povos. Também se
menciona, em doutrina, que os tratados visavam a aliança entre povos para conter ou tentar ven-
cer potências maiores.(591)
O exemplo mais citado na doutrina sobre o tratado que inaugurou o Direito Internacional,
veiculando cooperação internacional, é o consubstanciado entre hititas, governados por Hattusili
II, e egípcios, no reinado de Ramsés II, de extradição de presos.(592) M menciona que o
documento que consubstanciou este tratado está exposto no edifício sede das Nações Unidas, em
Nova York.(593) O tratado entre hititas e egípcios foi estabelecido, segundo S, para a “paz eterna
e fraternidade” entre os povos signatários(594) e data, provavelmente, de 1256 a.C.
O tratado entre hititas e egípcios é o primeiro documento internacional, do qual se tem co-
nhecimento, que versa, verdadeiramente, sobre cooperação internacional, especi camente sobre
extradição.(595) Poder-se-ia dizer, por conseguinte, que a cooperação internacional se iniciou como
cooperação judiciária.
(589) SHAW, Malcolm. International Law. 6 ed. Cambridge: Cambridge University Press, 2014. p. 10. Na verdade, há
registro doutrinário de que este primeiro tratado internacional teria sido entabulado na transição do IV para o III
milênio a.C., em cerca de 3010. Todavia, o primeiro tratado encontrado em seu inteiro teor teria sido concluído em
meados do III milênio entre o rei de Ebla e, ao que parece, o rei da Assíria, por meio do qual foram estabelecidas
relações de comércio e sanções a aplicar pelos delitos cometidos pelos súditos respectivos. Há, ainda, o tratado
entre o Grande Rei de Akkad, Narm-Sin, e o soberano de Elan, que seria do século XXII a.C. In: SERRA, Antonio Truyol y.
História do Direito Internacional Público. Lisboa: Instituto Superior de Novas Pro ssões, 1996. p. 19.
(590) Como exemplo, os seguintes textos bíblicos: Js 9; Jz 1. 28; Jz 3.8; 2Sm 8-10; 1 Re 4. 21; 1Re 5; 1Re 20; 2Re 20;
2 Cr 35. MACHADO a rma que “alguns estudiosos apontam para a existência de um verdadeiro sistema de direito
internacional na antiguidade, no Médio Oriente, durante os Impérios do Egito, Babilónia, da Assíria, da Medo-Pérsia,
dos Hititas, com os quais coexistiu o povo de Israel”. In: ob. cit., p. 58.
(591) SHAW, Malcolm. Ob. cit., p. 11.
(592) NEFF, Stephen C. A short history of International Law. In: EVANS, Malcom D. (edit.). International Law. Oxford:
Oxford University Press, 2003. p. 33. No mesmo sentido: PROST, Kimberly. Breaking down the barriers: international
cooperation in combating transnational crime. Disponível em http://oas.org/juridico/mla/en/can/en_can_prost.
en.html. Acesso em 21 maio de 2014.
(593) Ob. cit., p. 57.
(594) SHAW, Malcolm. Ob. cit., p. 10.
(595) NEFF, Stephen C. Ob. cit., p. 33. Nas palavras de NEFF: “The earliest surviving treaty of peacetime friendship
between two states dates from the twenty-third century BC and was concluded between the Syrian state of Ebla
and the region of abarsal, in present-day northern Iraq. It contained provisions relating to the travel of messengers
and merchants between the two states and appears also to have con rmed Abarsal as some kind of protected
state or vassal kingdom of Ebla. In general, peacemaking and alliances were a common topic of treaty makers.
So was law enforcement, in the form of cooperations against banditry or arrangements for the extradition

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