Introdução

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Introdução
A) Premissa terminológica
A jurisdição é essencial para a paz e o existir da sociedade e do Estado, que não se concebe
sem ela. Em verdade, é fundamental para o desenvolvimento social e econômico e para o alcance
dos seus objetivos sociais.(2) Para transitar no estudo da jurisdição no período antes da existência
do Estado Nacional ou mesmo onde o Estado não exerce o seu poder — e.g., no plano interna-
cional, há que se ter um pouco do sentido original da expressão jurisdictio, que vem de jus dicere,
a função de dizer o Direito, de declarar o Direito, em conjunto com outro aspecto da função de
julgar, na sua origem, no Direito Romano, já que cabia a um juiz privado, o iudex (o juiz), em
princípio não versado em Direito, emitir a sententia. A autoridade pública (praetor) a rmava qual
era a lei (norma jurídica) aplicável à controvérsia, que era decidida pelo iudex. Praticamente, o
magistrado apenas chancelava a atuação deste.(3)
E o que é jurisdição? CANOTILHO de ne a jurisdição (jurisdictio, jus dicere), como a ativi-
dade exercida pelos juízes, destinada “à revelação, extrinsecação e aplicação do direito num caso
concreto”.(4) Ao tratar do tema, MIRANDA conceitua a função jurisdicional como sendo aquela em
que se efetua a declaração do direito; por meio da qual se alcança a decisão de questões jurídicas,
seja em concreto, perante situações de vida, seja em abstrato, e que é, em princípio, atribuída a
órgãos especí cos, os tribunais, formados por juízes.(5) Em uma síntese bem apertada, a função
jurisdicional, para KELSEN, é a exercida por órgãos judiciais para decidir uma controvérsia.(6)
A Constituição brasileira, em seu art. 5º, XXXV, preceitua que “a lei não excluirá da aprecia-
ção do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. A Constituição portuguesa, no Capítulo 1 do
Título V, em seu art. 202º, n. 1, ao tratar da função jurisdicional, dispõe que “os tribunais são os
órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo” e, no mesmo
artigo, n. 4, prescreve que a lei poderá institucionalizar instrumentos e formas de composição não
jurisdicionais de con itos.
No presente estudo, a expressão jurisdição signi ca a função de solucionar litígios em har-
monia com uma certa ordem jurídica nacional, internacional, ou de Direito Regulador, seja por
órgãos judiciais ou não, públicos ou privados, desde que reconhecida a juridicidade do seu exer-
cício, no plano estatal, internacional etc. É, assim, a função de julgar, dada de forma regular, seja
no Estado, na Sociedade Internacional, na regulação etc., para a resolução de uma controvérsia.
Assim, no termo jurisdição, que se utilizará nesse trabalho, serão incluídos os equivalentes
jurisdicionais, que, embora não exercidos por autoridades judiciárias, i.e., por não ser integrantes
do Poder Judiciário do Estado ou de órgão judiciário público internacional, conduzem, sob certas
condições, ao mesmo resultado, a saber: à composição de nitiva da lide.(7)
(2) Montesquieu fala da importância da jurisdição — dos juízes, em maior ou menor extensão —, o número deles
(juízes), para o desenvolvimento do comércio. In: MONTESQUIEU. Do espírito das leis. São Paulo: Martin Claret, 2010.
p. 169 e 348.
(3) Sobre isto, ver: SANTOS JUSTO, A. Breviário de direito privado romano. Coimbra: Coimbra Editora, 2010. p. 139-
140; e FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. São Paulo:
Atlas, 1990. p. 35.
(4) CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2010. p. 645.
(5) MIRANDA, Jorge. Teoria do Estado e da Constituição. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2015. p. 363.
(6) KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do Estado. São Paulo: Martins Fontes, 1990. p. 267.
(7) CARNEIRO, Athos Gusmão. Jurisdição e competência. 18. ed. São Paulo: Saraiva, p. 78.
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Nesse sentido, a temática dos meios de resolução de con itos é relevantíssima para o Direito
Internacional contemporâneo(8), em especial porque tem como um de seus pilares o princípio da
solução pací ca dos litígios, envolvendo sujeitos para além dos Estados. Para isso, existem meca-
nismos devidamente caracterizados juridicamente, tendo os Estados ou os envolvidos na disputa,
em princípio, a liberdade de conformá-los,(9) dependendo do espaço jurídico-político em que o
con ito se desenvolva.
Sabe-se que os meios pací cos de resolução de litígios internacionais são os mais variados,
desde os autocompositivos, dentre eles os político-diplomáticos, até os heterocompositivos, como
a arbitragem e os tribunais internacionais. No Direito Internacional, têm se desenvolvido, grande-
mente, os chamados meios judiciais de resolução de litígios, nada obstante o recurso a eles ainda
seja incipiente,(10) quando comparados os espaços nacionais e internacionais, já que naqueles os
sistemas heterônomos são utilizados mais intensamente na solução dos litígios, recorrendo-se a
órgãos judiciais como fórmula comum na resolução de controvérsias.
Ensina RAMOS: “com a crescente complexidade das relações comerciais internacionais,
surgem organismos privados (normalmente associações de produtores ou de comerciantes)”, que
constituem, então, certos órgãos para solucionar os litígios emergentes ou o simples desacordo na
interpretação das normas que estabeleceram (Lex Mercatoria). Assim, a corporação internacional
dos agentes do comércio internacional criava os próprios órgãos “de apreciação e julgamento cujas
decisões eram em princípio geralmente acatadas. Na falta de tal cumprimento, a comunidade em
questão, não dispondo embora de poderes de imperium, possuía meios de sancionar de modo
efetivo os comportamentos que violavam as normas existentes”.(11)
Em muitos Estados, no plano do Direito Nacional, hodiernamente, também se fala em meios
não judiciais de soluções de controvérsias — métodos adequados ou alternativos de resolução de
con itos (MASC) ou ADR — alternative means of dispute resolution, o que pode ser tema bastan-
te espinhoso, diante de princípios constitucionais tidos por alguns como in exíveis, como o do
monopólio da jurisdição pelo Judiciário. Nada obstante, o Direito de cada nação está a fazer um
percurso também no sentido de adotar os métodos mais comuns de solução de controvérsias do
Direito Internacional: os não judiciais, como a arbitragem, não sujeitos às barras dos órgãos judi-
ciais de Direito Internacional Público, aos tribunais internacionais.
Com base nos compêndios de Teoria Geral do Estado, História do Direito, Direito Romano
etc., sabe-se que, no início da humanidade e durante muito tempo, as controvérsias eram solu-
cionadas pela autotutela (as denominadas criminais pela vingança privada); depois, passaram a
ser dirimidas por árbitros; a seguir, compostas de um modo misto (pretor estatal que declarava o
direito a ser aplicado ao  nal do processo e árbitro privado, que conduzia o processo e prolatava a
sentença) e, por último, a ser analisadas por Juízes o ciais — de início, autoridades administrativas
e, mais tarde, do Judiciário. Contudo, a jurisdição seria, para a quase unanimidade dos juristas, um
fenômeno moderno, que só pode ser bem de nida com o monopólio da função de julgar, então
chamada como jurisdicional, pelo Estado, o que teria surgido com a assunção do Estado Nacional.
(8) A partir daqui, nesse tópico, segue-se bem de perto o nosso: FERNANDES JÚNIOR, Raimundo Itamar Lemos. Os
meios pací cos de resolução de litígios, o Tratado entre México, Estados Unidos e Canadá (T-MEC) e a Online Dispute
Resolution (ODR). In: MONACO, Gustavo Ferraz de Campos; LOULA, Maria Rosa. Direito internacional e comparado:
trajetória e perspectivas, v. II — Homenagem ao professor catedrático Rui Manuel Moura Ramos — Direito Consti-
tucional, Direito da Nacionalidade, Direito Internacional Público e Direito Europeu. São Paulo: Quartier Latin, 2021.
p. 451-474.
(9) Arts. 2º, § 4º, e 33º da Carta da ONU e art. 279º da CDM. In: MACHADO, Jónatas. Direito internacional. 4. ed.
Coimbra: Coimbra Editora, 2013. p. 669.
(10) Ob. cit., p. 678-9.
(11) RAMOS, Rui Manuel de Moura. Direito internacional privado e Constituição — introdução a uma análise das suas
relações. Coimbra: Coimbra Editora, 1994. p. 91.

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