Capítulo 5 - A importância da jurisdição para a formação das estruturas supranacionais de poder

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CAPÍTULO 5
A importância da jurisdição para a formação
das estruturas supranacionais de poder
5.1. A integração regional
Nada obstante os esforços realizados no sentido de se obter a e cácia de uma Comunidade
das Nações que re ita o anseio dos povos, com efetividade universal, as ações nessa direção não
lograram o êxito esperado, por muitos fatores, em especial por causa da Guerra Fria. Contudo, ao
mesmo tempo em que as atuações das nações no âmbito internacional foram bastante intensas no
propósito de fortalecer a ONU, os Estados, sobretudo os mais desenvolvidos jurídico-politicamen-
te, também iniciaram, na mesma toada, diálogos de ordem regional, no intuito de construir laços
mais fortes, com alguns exemplos respaldados em instituições supranacionais.
Ao que parece, a formação de uma Sociedade das Nações que tenha efetividade, ou seja,
uma realidade palpável, é uma via de mão dupla, ou melhor, uma via de várias mãos, o que será
discutido com mais vagar mais adiante. A sua construção, ao que se vê, está sendo realizada por
várias frentes. Ao mesmo tempo se tem uma formulação de cúpula, e uma atuação nas regiões do
globo, além de outras vias de construção do tecido societário internacional, que também serão
abordadas mais à frente.
Cabe destacar que, se, por um lado, após a Segunda Grande Guerra, muitas iniciativas foram
realizadas no intuito de fortalecer a ONU, por outro lado, ações regionais, ainda com mais força,
foram empreendidas para ampliar as relações entre as nações de algumas regiões da terra, sobretu-
do na Europa e na América(979), muito embora o movimento de integração neste último continente
ainda seja bastante claudicante.
Por razões de ordem prática, os estudos que se seguirão neste capítulo centrarão foco na
Europa e na América. Contudo, a integração regional, embora em estágio bastante incipiente, tam-
bém ocorre em outras regiões do globo. No entanto, os passos dados na Europa e no continente de
maior in uência da cultura europeia, a América, foram em maior número e mais efetivos, subja-
zendo daí a importância desse estudo, com este corte, quiçá para o alcance de um dos elementos
para a montagem deste complexo mosaico em que se está a constituir a sociedade internacional.
Europa e América, conquanto sejam dois continentes que têm bastante similaridade cultural,
as aproximações nacionais no interior das mencionadas regiões, historicamente, têm-se dado de
modo diferente, em especial porque a Europa tem sido marcada por guerras em seu continente,
pelo menos até o  nal da Segunda Guerra, ao passo que, na América, poucos foram os episódios
de con itos armados entre as nações dela integrantes.
O presente capítulo desenvolve o tema dentro do Direito da Integração, ramo do Direito
Internacional Público que aborda as integrações regionais. Claro que o enfoque, no Direito
da Integração, em geral, é maior sobre as fases em que o Direito se desenvolve, em cada região.
(979) Existem outras iniciativas, como a APEC — Foro de Cooperação Ásia-Pací co, bloco que abrange países asiá-
ticos, norte-americanos, sul-americanos (Peru e Chile) e da Oceania, que não serão estudadas nesse aqui. Quanto
à ALCA — Área de Livre Comércio das Américas, proveniente de negociações que também trariam em seu bojo o
compromisso com a democracia, a erradicação da pobreza e com o desenvolvimento sustentável, as negociações
não avançaram.
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H as de ne como as seguintes: (1) zona de livre-comércio — objetivando a circulação de todos
os produtos sem gravames aduaneiros, quando produzidos e consumidos no território da zona;
(2) união aduaneira — permanece a zona de livre-comércio, criando-se uma tarifa externa comum
para a negociação com os demais países; (3) mercado comum — são derrubadas as fronteiras
entre os participantes, havendo livre circulação de bens, de pessoas, livre prestação de serviços,
liberdade de capitais e liberdade de concorrência; (4) união econômica e monetária — agrega-se
ao mercado comum a coordenação da economia, como moeda comum; (5) união política —
instituições jurídico-políticas comuns.(980)
Todavia, não é propriamente o objetivo deste estudo tal enfoque especí co (fases), mas, nes-
se evolver, destacar a jurisdição, que também tem tido um papel fundamental e, pelo seu grau
de permeabilidade supranacional, talvez possa demonstrar o nível de integração entre as nações
dessas regiões. Assim, analisar-se-á, a seguir, a integração regional na Europa e na América, com
ênfase na jurisdição, com o objetivo de se constatar, nas estruturas organizativas jurídico-políticas
supranacionais desses dois continentes, se a integração é maior ou menor a partir da análise juris-
dicional, e se a jurisdição tem servido para aprofundar ou não esta integração.
5.2. A União Europeia
5.2.1. Os primeiros passos rumo à integração — a CECA
Na Europa ocidental, após a Segunda Guerra, a atuação dos Estados foi  rme não só para a
busca da convivência pací ca entre as nações, mas também para uma aproximação mais efetiva,
que assegurasse, de fato, que o  agelo da guerra não mais atingiria os seus cidadãos. O projeto de
aproximação se inicia em várias frentes, mas a ação política internacional, entre os europeus oci-
dentais, da parte continental, foi dirigida, em especial, por esforços comuns de ordem econômica,
até porque estavam, ainda, devastados em face da guerra.(981)
Um dos principais marcos para a ideia de União Europeia foi o discurso de Winston Churchill,
na Universidade de Zurique, em 16 de setembro de 1946, em que ele propugnou a construção de
uma Europa unida. A ideia dele era a de “uma espécie de Estados Unidos da Europa”. Em suas
palavras: “o primeiro passo para a recriação da família europeia tem de passar por uma parceria
entre a França e a Alemanha”. Deste modo, a reconciliação entre a Alemanha e a França se avizi-
nhava como essencial, fazendo-se necessário, nessa visão, que estes dois países construíssem uma
(980) HUSEK, Carlos Roberto. Curso de direito internacional público. 12. ed. São Paulo: LTr, 2014. p. 230-1. VARELA
de ne essas fases como modalidades de integração regional: “MODALIDADES DE INTEGRAÇÃO. Existem cinco gra-
dações de integração reconhecidas pelo direito internacional, cada uma incorporando os benefícios da anterior: a)
zona de preferência tributária: os tributos são reduzidos entre os membros; b) zona de livre-comércio: não há tribu-
tos para parte importante de produtos; c) união aduaneira: há uma tarifa externa comum; d) mercado comum: livre
circulação de pessoas e capitais; e) união econômico-monetária: integração da política monetária e econômica”. In:
VARELLA, Marcelo D. Direito internacional público. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2016. p. 381.
(981) O primeiro ato dessa caminhada talvez tenha sido o tratado de Dunquerque, entre a França e o Reino Unido,
em 1947, que concluía uma aliança entre as nações mencionadas. Neste tratado também foi prevista a assistência
técnica entre os Estados citados, contra uma eventual agressão alemã, bem como foram estabelecidos princípios
de cooperação recíproca visando o interesse geral e o desenvolvimento econômico. In: REINER, Lúcio. Parlamento
europeu — história, composição e objetivos. In:
-notas-tecnicas/arquivos-pdf/pdf/3006192.pdf>. Acesso em: 4 out. 2017. Efetivamente, segundo VALÉRIO, a “OECE
foi a que desempenhou um papel mais central no arranque no projeto de integração europeia, particularmente
no domínio económico. Na verdade, foi no seu contexto que se desencadearam iniciativas de cooperação, não só
para utilização da ajuda americana, como era objeto explícito da organização, mas também no que respeita a todos
os aspectos da vida económica, em especial nos domínios monetários e comercial”. In: VALÉRIO, Nuno. História da
União Europeia. Lisboa: Presença, 2010. p. 69.
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confederação adequada a garantir a comunhão de destinos. Tal confederação não incluiria o Reino
Unido, já membro e líder da Commonwealth.(982)
C enfoca este desiderato, com destaque no Congresso da Haia (1947), em que estive-
ram presentes, dentre os 775 delegados de 24 Estados europeus, alguns dos principais nomes que
atuariam, efetivamente, para a construção da unidade europeia, dentre eles: Schuman, de Gasperi,
Monnet, Spaack, Reynaud e Blum. Nesse Congresso, muitos propugnaram pelo surgimento de
uma federação na Europa. Ao  nal, mesmo divididos quanto aos objetivos  nais da unidade, en-
fatizou-se o necessário desencadeamento de uma forte política de cooperação entre os Estados.(983)
Nessa direção, a unidade da Europa, segundo M, vai se construir, de uma forma mais
pragmática, pela via da cooperação intergovernamental, que respeita a soberania dos Estados.
Este modelo vai a rmar-se em diversos planos: econômico, defesa e político (criação de organi-
zações internacionais europeias). Contudo, a integração mesma se inicia um pouco mais tarde,
propriamente no plano econômico, “implicando transferências de soberania dos Estados para
uma entidade comum”, por meio da via comunitária.(984)
É inegável que partiu da França, por meio da Declaração Schuman(985), de 9 de maio de 1950,
a atitude propulsora, de modo e caz, do processo de integração regional. A Declaração destaca
a necessidade de uma Europa unida, para a concretização, no futuro, de um projeto de unidade
global. Para o primeiro passo, acentua a necessária união entre França e Alemanha, eliminando-
-se a oposição secular entre as duas nações, criando-se a solidariedade de fato entre estes dois
Estados. Nesse sentido, ele propôs que o processo se iniciasse mediante uma ação em domínio
limitado, mas, segundo ele, decisivo: a produção franco-alemã do carvão e do aço debaixo de
uma autoridade comum, em uma organização aber ta a outros países da Europa. O objetivo inicial
era a criaç ão de bases comuns para o desenvolvimento econômico, que seria “a primeira
etapa da Federação Europeia” e modi caria “o destino de regiões há muito dedicadas ao fabrico
de armas de guerra, de que foram sempre as principais vítimas”. Na Declaração, ele ressaltou que
a solidariedade de produção demonstraria que a guerra entre estas duas nações se tornaria não
só impensável, mas também impossível. Com isso, lançar-se-iam os fundamentos da uni cação
econômica, sob condições de igualdade, elemento fundamental para a produção industrial “de
todos os países que dela vierem a fazer parte”. A produção alcançada teria o propósito de bene -
ciar as nações europeias, mas também estaria “ao dispor do mundo inteiro, sem distinções nem
exclusões, contribuindo para a melhoria do nível de vida e para o progresso pací co” das nações.
S declara que os compromissos seriam objeto de um tratado, no qual se preveria, em
caso de diferendos, a solução a adotar, bem como as vias necessárias para impugnar as decisões da
Alta Autoridade. Para demonstrar os  ns pací cos da organização, a Declaração propugnou que
um representante da ONU elaboraria relatório anual das atividades da Alta Autoridade que seria
criada, para expressar e salvaguardar os seus  ns pací cos.
Nesse sentido, como diz R(), o compartilhamento de recursos naturais representa-
ria uma guinada para a celebração da paz. Assim, a Comunidade Europeia do Carvão e do Aço
(982) MARTINS, Ana Maria Guerra. Manual de direito da União Europeia. Coimbra: Almedina, 2014. p. 66.
(983) CAMPOS, João Mota. Direito comunitário. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1997, v. I, p. 41 e seguintes. No mesmo
sentido, ver: ROCHA, Luiz Alberto G. S. Estado, democracia e globalização. Rio de Janeiro: Forense, 2008. p. 111. Se -
gundo MARTINS, chegou-se a propugnar, no Congresso da Haia referido, uma eleição por sufrágio direto e universal
de uma assembleia constituinte. In: MARTINS, Ana Maria Guerra. Ob. cit., p. 67.
(984) Ob. cit., p. 68-9. É inegável que o BENELUX já tinha, desde cedo, uma união aduaneira, mas a pequena área de
extensão desses Estados parece não lhes permite ser o embrião da União Europeia, embora tenham tido in uência
também importante no processo de formação.
(985) SCHUMAN, Robert. Declaração Schuman. In:
pe-day/schuman-declaration.pt>. Acesso em: 13 set. 2018. Robert Schuman era o então Ministro das Relações
Exteriores da França. A Declaração foi escrita por Jean Monnet.
(986) ROCHA, Luiz Alberto G. S. Estado, democracia e globalização. Rio de Janeiro: Forense, 2008. p. 104.

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