Capítulo 4 - A jurisdição em domínios específi cos da estruturação da sociedade internacional

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CAPÍTULO 4
A jurisdição em domínios especí cos da
estruturação da sociedade internacional
4.1. A importância da jurisdição internacional para o surgimento e proteção
de direitos
No presente capítulo, pretende-se abordar a jurisdição internacional em alguns dos domínios
especí cos da sociedade internacional em que vem se desenvolvendo. Em face de sua proteção por
meio de instâncias jurisdicionais, alguns direitos surgiram muito cedo na história e tiveram ampla
evolução diretamente na esfera internacional, sendo nela consagrados, bem antes de sua evolu-
ção no plano interno, como os direitos vinculados ao livre-comércio. Na sequência das relações
comerciais, em sede internacional, outros direitos tiveram o seu surgimento e aperfeiçoamento
diretamente no plano externo, por meio da jurisdição, bem antes de sua proteção por alguma or-
ganização internacional formal, como é o caso dos direitos ligados à navegação marinha.
O evolver das relações comerciais também permitiu o surgimento de uma jurisdição com
bastante e cácia, na Organização Mundial do Comércio, que é uma jurisdição internacional entre
Estados, a mais forte jurisdição internacional nesse prisma, que existe na arena internacional.
Nada obstante, tendo em vista as liberdades internacionais dos comerciantes, e o desenvol-
vimento interno das nações das quais eram originários, no decorrer do processo histórico, após
o surgimento dos Estados nacionais, os comerciantes, em companhia dos industriais, em suma, a
burguesia, na liderança dos Estados nacionais europeus, também na esfera internacional, ajuda-
ram a extinguir o trabalho escravo e concordaram com o aperfeiçoamento da ordem internacional
do trabalho, bastante aprimorada, primeiro, no plano internacional, mesmo que em parte moti-
vados por con itos entre os trabalhadores e o capital. O Direito do Trabalho também evoluiu, na
órbita internacional, pela forma com que foi tratado este Direito por um sistema quase-jurisdicio-
nal internacional, por meio da OIT, uma Organização de Direito Internacional Público de âmbito
global mais antiga que a ONU, bem antes de ter alcançado o mesmo patamar de so sticação no
plano interno.
Assim, Direito do Comércio, Direito do Mar e Direito do Trabalho alcançaram amplo de-
senvolvimento internacional, em razão da jurisdição ou quase-jurisdição que lhe deram uma certa
tutela no plano internacional. A liberdade de iniciativa, a liberdade dos navegadores e a liberdade
no trabalho, conquistadas no plano internacional, no evolver da humanidade, por forte in uência
jurisdicional ou quase-jurisdicional, foram passos decisivos até que fosse construído, após o  age-
lo da Segunda Grande Guerra, um arcabouço internacional declaratório dos Direitos Humanos,
que somente encontraram consistência internacional por meio da jurisdição, para a sua efetividade,
com o surgimento das Cortes Internacionais de Direitos Humanos, em especial na Europa e na
América. A proteção dos direitos humanos no plano internacional se re ete no aprimoramento
desses direitos nos sistemas jurídicos nacionais, em grande parte pela existência desses Tribunais
Internacionais, com tutela efetiva, em regiões do globo.
Também após a Segunda Guerra, com a hecatombe atômica, desenvolveu-se, de uma certa
forma, embora fragmentadamente, jurisdição na órbita internacional para a proteção do meio
ambiente, objetivando concretizar um Direito essencial para a sobrevivência e continuidade da
humanidade sobre a terra.
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Ademais, em razão dos avanços tecnológicos, tem-se visto o surgimento de jurisdição inter-
nacional nesses domínios, que aparece para possibilitar a tutela de direitos em horizontes em que
não há tutela judicial por qualquer autoridade pública. A jurisdição, nesses termos, vem a permitir
a continuidade da regulação, legitimando-a em tal nível.
A análise que se fará a seguir partirá do surgimento de direitos no plano internacional, inclu-
sive por meio da história, desde a ótica da jurisdição. Consignar-se-á a importância da jurisdição
internacional para a formação de direitos no plano internacional, tecendo-se algumas considera-
ções sobre as instâncias jurisdicionais que existiram, as que ainda existem e as que surgiram para a
garantia de alguns dos direitos mais importantes para o homem no âmbito internacional, uma vez
que se relacionam com economia (comércio, navegação e tecnologia), trabalho, direitos humanos
e meio ambiente, temas fundamentais, que estão a alcançar grande desenvolvimento no plano
internacional, tendo, como importante fator formativo, a jurisdição internacional.
Escolheu-se, para o sequenciar da abordagem, a ordem cronológica de surgimento de cada
Direito no plano internacional, tratando-se, de início, dos relacionados ao comércio — relações
entre privados e, em seguida, entre Estados; depois, ao trabalho; a seguir, ao Direito do Mar;
depois, ao Direito do Meio Ambiente; e, por último, à jurisdição na regulação privada, que está
se constituindo independentemente dos Estados e das organizações internacionais de direito pú-
blico, mas que tem possibilitado acesso à tutela jurisdicional que soluciona con itos e assegura
direitos, no plano internacional, que, de outra forma, não seriam concretizados.
4.2. A liberdade dos mercadores, a Lex Mercatoria e a jurisdição no âmbito
do comércio internacional entre privados
A primeira liberdade que se destaca na história da humanidade, na viragem que se deu para
a sociedade moderna, mesmo que sedimentada, em parte, na Idade Média, é a liberdade dos mer-
cadores. Esta liberdade está intimamente ligada à Lex Mercatoria (Ius Mercatorium), que se trata
de uma particular forma de criar o Direito, como diz G, destinada a reger as relações no
comércio, com uma regulação normativa distinta das demais relações sociais. A diferença não se
dá apenas porque regula a atividade dos mercadores, mas porque é Direito criado pelos mercado-
res, sem a mediação da sociedade política, em uma época em que os mercadores não eram uma
classe dirigente ou uma força do governo da sociedade.(773) As regras do comércio puderam se
expandir pelos con ns comunais e estender-se, como regras pro ssionais da classe mercantil, até
onde existiam mercados, ou feiras. Tal regramento, para a época, signi cou um Direito Comercial
bastante desenvolvido.(774)
Sabe-se que, por muito tempo, a classe mercantil permaneceu extinta, privada de estabe-
lecimentos comerciais externos. No Alto Medievo, a vida econômica resumia-se ao interior da
propriedade feudal, a satisfazer as necessidades dos produtores e as pretensões dos senhores feu-
dais. O excedente era apenas trocado por outros produtos, quase sempre também campestres,
não havendo como chamar tais transações de comerciais no sentido moderno. A reabertura de
alguns estabelecimentos comerciais no norte e sul da Europa fez despertar, depois do ano 1000,(775)
os trá cos europeus, e até extraeuropeus, e o surgimento de uma nova classe de mercadores,
(773) SMITH diz que os comerciantes livres alcançaram o direito de instituir corporações “com o privilégio de possuí-
rem magistrados”. In: SMITH, Adam. Investigação sobre a natureza e as causas da riqueza das nações. Lisboa: Fundação
Calouste Gulbenkian, 1993-1999. p. 681.
(774) GALGANO, Francesco. Lex Mercatoria. Bologna: Il Mulino, 2001. pp. 9-10.
(775) Para VOLCKART e MANGELS, as origens da Lex Mercatoria se deram na Alta Idade Média, em especial entre os
séculos X e XIII d.C., sendo cruciais os séculos XI e XII. In: VOLCKART, Oliver e MANGELS, Antje. Are the roots of the
modern Lex Mercatoria rely medieval? In: Southern Economic Journal, 1/1/1999, v. 65, Issue 3, p. 427.
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andarilhos,(776) que se moviam em caravanas, em relação às quais, eles mesmos, providenciavam a
própria segurança. A classe dos mercadores, a partir de então, passa a dirigir o desenvolvimento
econômico, em face do declínio da economia feudal, transportando bens de luxo, consumidos
pelas altas cortes, movendo-se no interior da economia senhorial.(777) Em geral, atuando em feiras,
muitas delas anuais, os comerciantes faziam as suas transações com pagamentos imediatos, já que
se deslocavam com os bens que eram vendidos.
Nos séculos X e XI, como já se abordou, a Europa convivia com a ausência de Estados. A
lei, quando tinha força, valia de acordo com o estatuto pessoal, mais que como critério territorial.
Nesse tempo, os mercadores eram itinerantes. Corriam, em razão da quase inexistência de poder
público, riscos acentuados, signi cando, a atividade, uma certa aventura. Havia muita instabili-
dade e di culdade para guardar datas e encontrar novamente as mesmas pessoas com as quais se
havia negociado antes. Tudo tinha que se dar simultaneamente, pois os pertences, como se disse,
eram transportados em cada empreitada. A vantagem desse método, se é que se pode apontar
uma, era que, praticamente, não havia disputas, nem discussões sobre sistemas legais para resolver
lides, se pelo critério da localidade ou pelo pessoal. Nesse período, embora o comércio não te-
nha se expandido muito, houve um importante desenvolvimento: o status pessoal dos mercadores
mudou. Antes, em seus registros, muitos dos mercadores mencionavam que não eram livres, mas
agentes de um senhor eclesiástico ou secular. Todavia, desde a mais alta idade carolíngea, muitos
mercadores pareciam pessoalmente livres. De um lado, por causa da instável situação política, em
que os senhores eram incapazes de controlar as ações dos seus agentes viajantes, que tornaram-se
independentes, não devendo lealdade a ninguém.(778)
Ao que parece, o século XI viu um reavivamento do comércio. Objetivando resolver pro-
blemas de segurança, em alguns lugares da Europa, segundo V e M, mercadores
livres formaram comunidades para viajar juntos, sendo estas organizações chamadas hansas,
artes, guildas etc. A  nalidade era a proteção de seus membros. Eram genuínas cooperativas
de proteção, o que incluía uma ajuda armada contra assaltantes. Os comerciantes passaram a
integrá-las, para dispor dessa segurança. As guildas também geraram comunidades de con ança
mútua, criando a pax mercatoria e realizando esta função que mais tarde seria do Estado. Isto
permitiu a expansão do comércio, a facilitar, a partir de então, a visitação de feiras com regulari-
dade e o guardar de datas.(779)
Desde o século XI, há registro histórico da prática dos comerciantes, em que eles, para
resolver as suas disputas, não aplicavam a lei, mas o seu “próprio arbítrio”, e já diziam que carta
imperial os permitia agir assim. Claro que as guildas não proviam aos mercadores apenas segu-
rança, mas, já no século XI, eles tinham as suas próprias regras, ou seja, as suas organizações, já
tratando de transações não simultâneas. Estas normas distinguiam os mercadores das demais
pessoas entre as quais viviam, independentemente de estarem em casa ou no exterior. Entre eles,
começaram as relações não simultâneas, desenvolvendo as de crédito e, posteriormente, o Direito
regrando tais relações. E, com isso, receberam, também, cartas imperiais, con rmando o que já
existia como costume, permitindo que as disputas fossem resolvidas de acordo com suas pró-
prias normas, criadas por eles, espontaneamente, e reconhecidas pelas autoridades, por meio
dos privilégios e das imunidades. Houve uma suplementação, não uma suplantação, do sistema
(776) Ob. cit., p. 436. Para SMITH, “parecem, na verdade, ter sido um conjunto de pessoas muito pobres, miserável,
que costumava deambular com os seus haveres de um lado para o outro, e de feira em feira, como os mendigos de
nossos dias [...] transportavam as suas mercadorias de um local para outro até uma feira, sempre que aí montavam
uma barraca ou tenda para vendê-las”. In: SMITH, Adam. Ob. cit., p. 678.
(777) GALGANO, Francesco. Ob. cit., p. 29-30.
(778) VOLCKART, Oliver e MANGELS, Antje. Ob. cit., p. 436-7.
(779) Ob. cit., p. 437.

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