Cuidados paliativos e a responsabilidade penal do médico por omissão em casos de suspensão de suporte artificial de vida

AutorFlávia Siqueira e Izabele Kasecker
Páginas191-211
CUIDADOS PALIATIVOS E A
RESPONSABILIDADE PENAL DO MÉDICO
POR OMISSÃO EM CASOS DE SUSPENSÃO DE
SUPORTE ARTIFICIAL DE VIDA
Flávia Siqueira
Doutora em Direito Penal pela UFMG, com período sanduíche na Universität Augsburg
e estâncias de pesquisa na Humboldt-Universität zu Berlin. Pós-doutorado pela UFMG,
com pesquisa nanciada pelo programa CAPES PrInt. Professora de Direito Penal na
Universidade Presbiteriana Mackenzie/SP.
Izabele Kasecker
Doutoranda pela Humboldt-Universität zu Berlin, mestra (LL.M.) em Direito alemão
pela Universität Augsburg. O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação
de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).
Sumário: 1. Introdução. 2. O paradigma de respeito à autonomia do paciente como ponto
arquimédico para a solução da controvérsia. 3. A suspensão de suporte articial de vida:
comportamento ativo ou omissivo? 3.1 Esclarecimentos conceituais. 3.2 Responsabilidade do
médico por homicídio por comissão (art. 121, CP)? A controvérsia em torno dos comportamen-
tos ambivalentes. 4. A responsabilidade penal do médico por omissão em casos de suspensão
de suporte articial de vida. 4.1 Pode o médico ser punido por homicídio por omissão? 4.2
Pode o médico ser punido por omissão de socorro? 5. Conclusões. 6. Referências.
1. INTRODUÇÃO
Os cuidados paliativos compreendem, em termos gerais, uma pluralidade de medi-
das cujo emprego tem como f‌inalidade promover a qualidade de vida e o conforto físico,
psíquico e espiritual de pacientes que se encontrem no f‌im da vida, em casos de doenças
terminais.1 Realizadas por equipe multidisciplinar, tais práticas destinam-se, principal-
mente, ao alívio da dor e do sofrimento dos pacientes durante o processo da morte; no
entanto, podem encerrar uma série de intervenções que acabam tangenciando diferentes
modalidades de eutanásia – seja a ativa, a passiva ou a indireta. Nesse sentido, é possível,
a depender do quadro médico e dos valores do paciente concreto, que a suspensão de
1. A OMS def‌ine os cuidados paliativos como a “prevenção e alívio do sofrimento de pacientes adultos ou pediátricos
e suas famílias ao lidar com problemas associados a doenças ameaçadoras da vida” (Tradução nossa). Cf. WORLD
HEALTH ORGANIZATION. Integrating palliative care and symptom relief into primary health care: a WHO guide
for planners, implementers and managers. Geneva: World Health Organization, 2018, p. 5.
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FLÁVIA SIQUEIRA E IZABELE KASECKER
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suporte artif‌icial de vida seja concebida, também, como um cuidado paliativo – o que faz
emergir a indagação acerca da punibilidade dessa conduta segundo a legislação vigente.
Nosso intuito no presente trabalho é, portanto, investigar precisamente essa questão.
Para atingir esse objetivo, traremos, primeiramente, algumas ref‌lexões sobre o paradigma
de respeito à autonomia do paciente, explicitando a relevância da vontade do enfermo
no âmbito das intervenções médicas e apontando quais são as suas consequências no
tratamento do problema (2). Em seguida, procederemos aos esclarecimentos concei-
tuais necessários para a adequada compreensão do tema, para então discutirmos se a
suspensão de suporte artif‌icial de vida deve ser concebida como uma conduta ativa ou
omissiva – trata-se, aqui, de uma questão teórica que, além de bastante complexa, projeta
efeitos concretos e signif‌icativos na def‌inição da responsabilidade penal do médico (3).
Posteriormente, analisaremos a eventual responsabilidade do médico por homicídio por
omissão ou por omissão de socorro nos casos de suspensão de suporte artif‌icial de vida
(4). Por f‌im, apresentaremos as nossas conclusões (5).
2. O PARADIGMA DE RESPEITO À AUTONOMIA DO PACIENTE COMO PONTO
ARQUIMÉDICO PARA A SOLUÇÃO DA CONTROVÉRSIA
O pano de fundo do debate em torno da responsabilidade penal dos médicos que
suspendem o suporte artif‌icial de vida de seus pacientes vincula-se, em última instância,
a uma pergunta mais abrangente relativa às bases do Direito Penal da Medicina: qual
o fundamento que atribui legitimidade às intervenções médicas? Em termos gerais, as
intervenções médicas podem se amoldar aos tipos penais da lesão corporal (art. 129,
CP2) e/ou do constrangimento ilegal (art. 146, CP3), porquanto podem constituir prima
facie tanto uma afetação da integridade física quanto da liberdade do paciente.4 Por sua
vez, as hipóteses em que o médico se omite e deixa de realizar o tratamento indicado
podem, em tese, ensejar a punição pelos crimes de homicídio ou lesão corporal por
omissão imprópria (arts. 121 ou 129 c/c art. 13, par. 2º, CP5) ou, ainda, por omissão de
socorro (art. 135, CP6).
2. “Art. 129. Ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem: Pena: detenção, de três meses a um ano”.
3. “Art. 146. Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, ou depois de lhe haver reduzido, por qualquer
outro meio, a capacidade de resistência, a não fazer o que a lei permite, ou a fazer o que ela não manda: Pena:
detenção, de três meses a um ano, ou multa”.
4. Por um lado, as intervenções médicas recaem sobre o corpo e a saúde do paciente, independentemente do
resultado a que se chega, atingindo a sua substância corporal, seja pela incisão feita com um bisturi, pelo furo
na pele realizado com uma seringa ou até mesmo pela alteração do funcionamento do corpo provocado por um
tratamento medicamentoso. Por outro, a decisão do paciente em favor ou contra a realização de um tratamento
médico representa o exercício da sua liberdade e autodeterminação, de modo que a não observância dos estritos
limites abrangidos pela sua vontade pode vir a constituir um constrangimento ilegal. A esse respeito, cf. SIQUEIRA,
Flávia. Autonomia, consentimento e Direito Penal da Medicina. São Paulo: Marcial Pons, 2019, p. 347 e ss.
5. “Art. 121. Matar alguém: Pena: reclusão, de seis a vinte anos”; Art. 13 “§ 2º A omissão é penalmente relevante
quando o omitente devia e podia agir para evitar o resultado. O dever de agir incumbe a quem: a) tenha por lei
obrigação de cuidado, proteção ou vigilância; b) de outra forma, assumiu a responsabilidade de impedir o resultado;
c) com seu comportamento anterior, criou o risco da ocorrência do resultado”.
6. “Art. 135. Deixar de prestar assistência, quando possível fazê-lo sem risco pessoal, à criança abandonada ou
extraviada, ou à pessoa inválida ou ferida, ao desamparo ou em grave e iminente perigo; ou não pedir, nesses casos,
o socorro da autoridade pública: Pena: detenção, de um a seis meses, ou multa”.
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