A curatela sob medida: notas interdisciplinares sobre o Estatuto da Pessoa com Deficiência e o novo CPC

AutorCélia Barbosa Abreu
Ocupação do AutorPós-Doutorado pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro-UERJ
Páginas545-568
A curatela sob medida: notas interdisciplinares
sobre o estatuto da pessoa com deficiência
Célia Barbosa Abreu*
1. Introdução
O trato da questão foi inicialmente proposto na doutrina brasileira em
2009, quando se deu a publicação de uma tese de doutorado em Direito,
que propunha a leitura do artigo 1.772 do Código Civil/2002 em conformi-
dade com a Constituição da República. Em síntese, buscava-se chamar a
atenção para a curatela parcial e lhe conferir um tratamento distinto da lei-
tura literal da letra da lei, de modo que aquela se tornasse possível a todos
que dela precisassem e “na medida” de suas necessidades. Falava-se em
“flexibilizar a curatela” (ABREU, 2009: 180-230).
A pesquisa adotava a linha civil constitucional e o exame do regime jurí-
dico das incapacidades era centrado na — proteção jurídica da pessoa por-
tadora de transtornos mentais — em relação a qual a interdição e a declara-
ção da incapacidade são requeridas. Notava-se o fato da codificação civil se
valer de critérios médicos (imprecisos) para a distinção entre os relativa-
mente e absolutamente incapazes, sem mencionar a ínfima dedicação da
doutrina ao problema, num quadro revelador de afronta aos direitos huma-
nos fundamentais destes sujeitos e, ainda, de seus interesses econômicos.
Além disso, a praxe jurisprudencial brasileira era a da predominância da
adoção das interdições totais sobre as parciais (ABREU, 2009: 1).
* Pós-Doutorado pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro-UERJ. Doutora e Mestre em Direito pela Universidade do
Est ado do Rio de Janei ro, na linh a de pe squis a em Di reito Civil . Prof esso ra Adj unta d e
Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade Federal Fluminense. Docente
Permanente do Programa de Pós-Graduação em Direito Constitucional PPGDC/UFF.
E-mail: “celiababreu@terra.com.br”. Lattes: “http://lattes.cnpq.br/ 8015623070536170”.
Este trabalho é fruto de discussões ocorridas no âmbito do Grupo de Pesquisa
Direitos Fundamentais/UFF, cadastrado no CNPQ, sob a liderança da autora.
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Desde então, o tema vinha sofrendo alterações doutrinárias, porém
pouco expressivas nas decisões judiciais das interdições civis. Apesar disso,
recentemente, duas importantes leis foram publicadas, quais sejam, o Novo
CPC e o Estatuto da Pessoa com Deficiência, possuindo relevante potencial
de contribuição para as transformações necessárias nesta seara. Interessa,
portanto, identificar avanços e recuos ocorridos na matéria.
Desse modo, a exposição que segue terá sua atenção novamente voltada
para os portadores de transtorno mental, especialmente naquilo que os no-
vos diplomas legislativos os atingiram, de maneira a consagrar a chamada
“flexibilização” da curatela e da interdição civil, aqui também denominada
“curatela sob medida”. A análise intenta demonstrar que a necessidade de
fixação na prática dos “limites da curatela”, caso a caso, consiste numa im-
portante alternativa à disposição do operador do direito com vistas a possi-
bilitar a inclusão social destes cidadãos.
A metodologia empregue é histórica e dialética. O texto segue subdivi-
dido em três partes principais. A primeira, voltada para comentários em
torno da interpretação da curatela e da interdição a partir da Constituição
de 1988. A segunda, dedicada à uma releitura com esteio na Convenção
Internacional das Pessoas com Deficiência. A terceira, destinada ao trato do
reconhecimento legal da “curatela sob medida” no Estatuto da Pessoa com
2. A exegese da curatela e da interdição em conformidade com a Cons-
tituição de 1988
Para combater a exclusão dos portadores de transtorno mental, a via
eleita era a de enfrentar a leitura clássica da curatela, demonstrando a vio-
lência que ela impunha ao cidadão quando determinada numa extensão não
correspondente às reais condições do interditando. Tratava-se de um traba-
lho em torno do art. 1772, CC/2002. Em suma, um dispositivo esquecido
pela doutrina e jurisprudência, embora trouxesse a curatela parcial, ou seja,
uma solução menos drástica para a vida do curatelado.
A interpretação constitucional do artigo era uma decorrência lógica da
cláusula geral de tutela da pessoa humana, trazendo uma medida que deve-
ria estar condizente com o caso, a fim de melhor proteger o interditando
(PERLINGIERI, 1972: 16). Afinal, em caso de existirem, a despeito das
dificuldades, habilidades/condições potenciais de desenvolvimento da per-
sonalidade, estas deveriam prevalecer. Se possível apenas assistir e não
substituir o sujeito, esta alternativa se apresentava como a melhor saída.
Havia, entretanto, a possibilidade de se afirmar que o artigo 1772, do
mesmo jeito que os artigos 3º, 4º, 1767 podia ser considerado inconstitucio-
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