Reflexões sobre a autocuratela na perspectiva dos planos do negócio jurídico

AutorAna Carolina Brochado Teixeira, Anna Cristina de Carvalho Rettore e Beatriz de Almeida Borges e Silva
Ocupação do AutorDoutora em Direito Civil pela UERJ. Professora de Direito de Família e Sucessões do Centro Universitário UNA. Advogada/Mestranda em Direito Privado pela PUC Minas. Advogada/Mestranda em Direito Privado pela PUC Minas. Advogada
Páginas319-361
Reflexões sobre a autocuratela na perspectiva
dos planos do negócio jurídico
Ana Carolina Brochado Teixeira*
Anna Cristina de Carvalho Rettore**
Beatriz de Almeida Borges e Silva***
How many years can some people exist,
before theyre allowed to be free?
Bob Dylan
1
1. Introdução
Com o aumento da longevidade e o envelhecimento da população, tem-
se notado a majoração proporcional de doenças incapacitantes ocorridas na
velhice. Com isso, cresceu, também, o número de ajuizamentos de ações de
curatela.2 Assim, diante da estrutura democrática da Constituição brasilei-
ra, faz-se de todo necessário o aprofundamento do estudo da curatela sob o
viés da autonomia privada. É, por isso, importante estudar a possibilidade,
no ordenamento brasileiro, de existirem, valerem e serem eficazes as decla-
rações prévias de vontade no caso de futura incapacidade psíquica, isto é,
“em que medida os desejos autônomos previamente expressados de uma
pessoa devem ser considerados válidos e obrigatórios depois que a pessoa se
torna incapaz?”3
* Doutora em Direito Civil pela UERJ. Professora de Direito de Família e Sucessões
do Centro Universitário UNA. Advogada.
** Mestranda em Direito Privado pela PUC Minas. Advogada.
*** Mestranda em Direito Privado pela PUC Minas. Advogada.
1 ZIMMERMAN, Robert Allen. Blowin’ in the wind. In The freewheelin’ Bob Dy-
lan. Nova York: Columbia Records, 1963. 1 CD. Faixa 1.
2 No fórum de Belo Horizonte/MG, entre os meses de janeiro a novembro do ano de
2014, foram ajuizadas 1.513 ações de interdição (137 delas na 5ª Vara de Família), o
que demonstra o quão expressivo é o tema desse estudo.
3 BEAUCHAMP, Tom L; CHILDRESS, James F. Princípios de ética biomédica.
São Paulo: Loyola, 2002, p. 149.
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Essa ideia vai na esteira das novas diretivas antecipadas que vêm sendo
criadas nos Estados Unidos da América, para atender a situações específi-
cas, que vão muito além da hipótese de terminalidade, sugerida pelo testa-
mento vital ou living will.4 As possibilidades de manifestação do conteúdo
do documento são múltiplas e, a priori, permitidas desde que não violem o
ordenamento jurídico; afinal, aqui vale a máxima de que tudo o que não é
proibido, é permitido.
Impende investigar se um documento que esboce escolhas futuras, para
o caso de o declarante se tornar incapaz, sendo necessário ser curatelado,
preenche os requisitos do negócio jurídico nos planos da existência, valida-
de e eficácia, exigidos pelo ordenamento brasileiro. Para tanto, algumas
questões práticas nortearão a nossa reflexão: é aceitável a escolha prévia do
curador pelo próprio declarante? É possível que ele já elabore orientações
quanto à administração de seus bens? É viável que ele faça escolhas quanto
aos tratamentos de saúde a que pretende se submeter e os que quer recusar
por ferir convicções pessoais? Entendemos que sim, vejamos, então, os fun-
damentos que nos levaram a essa conclusão.
Antes disso, no entanto, cabe estabelecer algumas premissas que orien-
tam o desenvolvimento deste artigo. Quanto à terminologia, optamos pelo
termo autocuratela,5 por transmitir com maior precisão o objeto desse es-
tudo, em comparação à expressão diretivas antecipadas que vem sendo uti-
lizada pela doutrina. No entanto, ressalvamos que se trata de documento
em que a pessoa faz escolhas futuras, na seara existencial e/ou patrimonial,
para o caso de eventual incapacidade, mas que não prescinde da intervenção
do Poder Judiciário.6
A expressão autocuratela é a instituição pela qual se possibilita que a pessoa
capaz, mediante um documento apropriado, deixe preestabelecidas as suas
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4 As diretivas antecipadas são um t ermo genérico para uma categoria geral de docu-
mentos. Trata-se de declarações gerais, preponderantemente a respeito de questões
existenciais, que se referem às preferências do paciente em relação a intervenções ou
não intervenções médicas, que deverão ser concretizadas se a pessoa perder a capaci-
dade. Ver, por todos, DADALTO, Luciana. Testamento Vital. 3. Ed. São Paulo: Atlas,
2015.
5 O termo autocuratela é da autoria da Profa. Thais Câmara Maia Fernandes Coe-
lho, que em seu mestrado desenvolveu dissertação a respeito do tema “Autocuratela
patrimonial”. (In COELHO, Thais Câmara Maia Fernandes. Autocuratela patrimo-
nial: Mandato permanente para o caso de incapacidade superveniente. Dissertação de
mestrado. PUC Minas. 2012).
6 Tal justificativa se dá porque o termo autocuratela pode passar a falsa impressão
de que o documento se basta, sendo despicienda a interferência judicial.
questões (patrimoniais e/ou existenciais), para ser implementadas em uma
eventual incapacidade. Tal administração pode ser realizada através de pes-
soas designadas ou um organismo tutelar que teriam que desempenhar os
cargos de mecanismo de vigilância e controle. Esse seria o conceito positivo
de autocuratela, mas em paralelo também cabe um conceito negativo, ou
aquele pelo qual se exclui expressamente determinadas pessoas no exercí-
cio dessa função.7
No que se refere à sua natureza jurídica, a autocuratela é um negócio
jurídico atípico (vez que não se encontra previsto expressamente em nosso
ordenamento jurídico), existencial e/ou patrimonial. Faz-se necessário,
portanto, entender melhor as razões pelas quais um instrumento dessa na-
tureza é classificado tecnicamente como negócio jurídico.
Primeiramente, deve-se observar que, sendo a seara contratual a mais
abrangente de aplicação da autonomia privada, ainda que os negócios jurídi-
cos típicos, legalmente previstos, abranjam grande parte das necessidades
humanas e sejam utilizados como regra geral, o ordenamento permite “aos
interessados pactuar negócio que não se ajuste aos tipos previstos na lei,
estruturando um outro que sirva às suas específicas conveniências. A esses
outros negócios dá-se o nome de negócios jurídicos atípicos, ou inomina-
dos”.8
As normas individuais são exteriorizadas por meio de negócios jurídicos,
que se consubstanciam num “fato produtor de normas. Na linguagem tradi-
cional a palavra ‘negócio jurídico’ é usada tanto para significar o ato produ-
tor da norma como ainda a norma produzida pelo ato. O negócio jurídico
típico é o contrato.”9 Isso não exclui outras hipóteses de negócios jurídicos
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7 COELHO, Thais Câmara Maia Fernandes. Autocuratela patrimonial: Mandato
permanente para o caso de incapacidade superveniente. Dissertação de mestrado.
PUC Minas. 2012, p. 51. Rolf Madaleno também discorre brevemente sobre o tema:
“A autocuratela ou autotutela como é denominada no direito alienígena, respeita a um
mandato preventivo, afigurando-se em um mecanismo jurídico consistente em uma
declaração de vontade firmada por uma pessoa capaz, que de forma preventiva, diante
de uma situação de incapacidade, previsível ou não, por padecer de uma enfermidade
degenerativa, por exemplo, organiza sua futura curatela, indicando atitudes a serem
tomadas quanto à sua pessoa e em relação a seus bens, organizando preventivamente a
sua curatela, podendo estabelecer órgãos de fiscalização de gestão dos seus bens e de-
signando as pessoas que irão integrar estes órgãos.” (MADALENO, Rolf. Curso de
Direito de Família. 5 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014, p. 1.211).
8 MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico: Plano da existência. 17
ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 253. No Código Civil: art. 425. É lícito às partes esti-
pular contratos atípicos, observadas as normas gerais fixadas neste Código.
9 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 284.

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