O direito protetivo após a Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência, o novo CPC e o Estatuto da Pessoa com Deficência

AutorJoyceane Bezerra de Menezes
Ocupação do AutorDoutora em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco
Páginas509-543
O direito protetivo após a Convenção sobre
a proteção da pessoa com deficiência, o novo CPC
e o Estatuto da Pessoa com Deficiência* **
Joyceane Bezerra de Menezes***
“Queremos ser escuchados y queremos tomar decisiones
sobre cómo llevar nuestra vida. A veces podríamos necesitar
ayuda para tomar decisiones, pero eso no significa que no
podamos decidir.” (Independiente pero no solo: informe
mundial sobre el derecho a decidir. Inclusion Internacional)
1. Introdução
No Brasil, a curatela é um instituto antigo que remonta às ordenações
lusitanas. Seu perfil funcional sempre esteve voltado à proteção integral da
pessoa maior e incapaz, confiando-se ao curador a tarefa de representá-la ou
assisti-la na prática dos atos da vida civil em geral, ante à pressuposição de
sua total ou parcial incapacidade de fazê-lo por si mesma. Como na estrutu-
ra do Direito Civil tradicional esses atos estavam concentrados na seara dos
contratos, no regime da apropriação e no âmbito das relações familiares, os
* Estudo desenvolvido no curso do estágio pós-doutoral sob supervisão de Maria Ce-
lina Bodin de Moraes, na Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Parte das ativida-
des previstas na execução do Projeto intitulado “A simbiose entre o público e o privado
no Direito civil-constitucional: uma discussão sobre o espaço da autonomia ético-exis-
tencial, intimidade e vida privada”, no: 552337/2011-0. Chamada Pública
MCT/CNPq/MEC/CAPES – Ação Transversal nº 06/2011 – Casadinho/Procad.
** Texto publicado originariamente na revista Civilistica.com. Disponível em:
http://civilistica.com/o-direito-protetivo-no-brasil/.
*** Doutora em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco. Mestre em Direito
pela Universidade Federal do Ceará. Professora titular da Universidade de Fortaleza.
Programa de Pós-Graduação Strictu Senso em Direito (Mestrado/Doutorado) da Uni-
versidade de Fortaleza, na Disciplina de Direitos de Personalidade. Professora adjunto
da Universidade Federal do Ceará. E-mail: joyceane@unifor.br.
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três pilares centrais do sistema privado1, a atuação do curador era regula-
mentada em atenção aos interesses patrimoniais. Ainda que coubesse ao
curador a administração da pessoa do curatelado, o exercício da curatela no
plano das questões existenciais não merecia condicionamento legal especí-
fico.
As guerras do século XX, assim como as atrocidades perpetradas com o
auxílio da ciência e da tecnologia2, reafirmaram um acordo mundial pela
promoção da humanidade e de cada ser humano per se, de sorte que o res-
peito aos direitos humanos passou a representar a melhor medida do grau
de civilização. Sob essa perspectiva, para além dos documentos internacio-
nais gerais sobre os direitos do homem, emergiu uma segunda fase de pro-
teção da pessoa, por meio de tratados ou convenções voltados para a tutela
de grupos específicos como as crianças, as mulheres, os negros, os índios e
os deficientes3. Na mesma esteira, as constituições dos estados ocidentais
passaram a promover uma proteção mais concreta à pessoa, ampliando o
catálogo dos direitos e garantias fundamentais, em sua grande maioria, cal-
cados no princípio da dignidade da pessoa humana. Os efeitos dessa onda
protetiva chegaram ao direito privado, notadamente, pela emergência dos
direitos de personalidade.
Direitos humanos4, direitos fundamentais e direitos de personalidade se
entrelaçaram para viabilizar uma tutela geral da pessoa nas relações públicas
e privadas, considerando-se que nessas últimas também se verificam lesões
à dignidade e aos direitos mais eminentes do sujeito. Exemplificativamente,
as pessoas com deficiência psíquica e intelectual foram, por muito tempo,
excluídas de uma maior participação na vida civil, tiveram a sua capacidade
jurídica mitigada ou negada, a sua personalidade desrespeitada, seus bens
espoliados, a sua vontade e sua autonomia desconsideradas. Ao cabo e ao
fim, a capacidade civil serviu de critério para atribuir titularidade aos direi-
tos fundamentais.
Com o intuito de lhes garantir uma proteção especial e assegurar-lhes
uma participação efetiva na vida comunitária, a Organização das Nações
Unidas — ONU promulgou a Convenção sobre os Direitos da Pessoa com
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1 FACHIN, Luiz Edson. Teoria Crítica do Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar,
2000, p.13.
2 TRINDADE, Antonio Augusto Cançado. Tratado de direito internacional dos di-
reitos humanos. Vol. II. Fabris Editor: Porto Alegre, 1999, p.336.
3 PIOVESAN, Flávia. Convenção da ONU sobre os Direitos das Pessoas com Defi-
ciência: inovações, alcance e impacto. In: FERRAZ, Carolina Valença et al. (Coord.).
Manual dos direitos das pessoas com deficiência. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 33-51.
4 O Brasil já ratificou os tratados internaconais mais significativos do sistema global,
em material de direitos humanos. Da mesma forma, também é signatário de quase
todos os tratados do sistema interamericando de direitos humanos.
Deficiência (CDPD) e seu protocolo facultativo, no ano de 2007. No Brasil,
o documento teve a sua aprovação por meio do Decreto n. 186/2008, com
quórum qualificado de três quintos, nas duas casas do Congresso Nacional,
em dois turnos, conforme instrui o art. 5º, §3º, da Constituição Federal,
logrando alcançar a hierarquia de norma constitucional. Por cautela adicio-
nal e para evitar eventuais prejuízos ante às divergentes interpretações des-
se dispositivo constitucional, o Presidente da República ratificou e promul-
gou a Convenção por meio do Decreto Presidencial nº 6.949/2009, cum-
prindo o rito de ratificação dos tratados em geral5.
Sob inspiração do modelo social de abordagem6, a Convenção definiu a
deficiência como um impedimento ou limitação duradoura de natureza físi-
ca, mental, intelectual ou sensorial que, em interação com as diversas bar-
reiras sociais, pode obstruir a participação plena e efetiva na sociedade
(art.1º). Assim, para alcançar seu principal objetivo que é o de garantir a
inclusão participativa da pessoa com deficiência, propôs aos Estados signa-
tários a mitigação das barreiras sociais e institucionais que se prestam ape-
nas ao agravamento daquelas limitações naturais7. Algumas dessas barreiras
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5 MAZZUOLI, Valério de Oliveira. O novo § 3º do art. 5º da Constituição e sua
eficácia. Revista de Informação Legislativa. A. 41, nº 167, jul/set/2005, p.103. Dis-
ponível em: “http://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/739/R167-
08.pdf?sequence=4”. Acesso em: 02/julho/2015.
6 “Al contrario de lo sustentado por el modelo médico, desde los años sessenta y
setenta del siglo passado, comienza a abrirse caminho un nuevo concepto que cambia
la visión tradicional que se venía teniendo de la discapacidad u que traslada el foco de
lo individual a social, de la discapacidad como carência de la persona que hay remediar-
se, a la discapacidad como produto social, como constructo resultado de las interacio-
nes entre um individuo y un entorno no concebido para él. El modelo social atenua
fuertemente los componentes médicos de la discapacidad, que serian unos más dentro
de una série, y ressalta los sociales, los fatores ambientales, que resultan determinan-
tes. Así, al considerar que las causas que están en el origen de la discapacidad son so-
ciales, perde parte de sentido la intervención puramente médica. Las “soluciones” no
deven tener cariz individual respecto de cada persona concreta “afectada”, sino que
más bien deben dirigirse a la sociedade. A diferencia del modelo médico que se asienta
sobre la rehabilitación de las personas con discapacidad, el modelo social pone el ênfase
en la rehabilitación de una sociedade, que ha de ser concebida y diseñada para hacer
frente a las necessidades de todas las personas, gestionando las diferencias e integrando
la diversidade”. (PÉREZ BUENO, Luis Cayo y LORENZO GARCÍA, Rafael. Los di-
fusos limites de la discapacidad en el futuro. Hacia un nuevo estatuto de la discapaci-
dad. In Tratado sobre discapacidad. LOURENZO, Rafael de. y PÉREZ BUENO, Luiz
Cayo (Diretores). Navarra: Editorial Aranzadi, SA, 2007, p.1.553).
7 MENEZES, Joyceane B. A capacidade dos incapazes: um diálogo entre a Conven-
ção da ONU sobre os direitos das pessoas com deficiência e o Código Civil brasileiro.
Direito Civil Constitucional: a ressignificação da função dos institutos fundamentais

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