Direito de adotar e de exercer a guarda, a tutela e a curatela
Autor | Thaís Fernanda Tenório Sêco |
Ocupação do Autor | Mestre em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Professora assistente de Direito Civil do Departamento de Direito da Universidade Federal de Lavras |
Páginas | 415-442 |
Direito de adotar e de exercer a guarda,
a tutela e a curatela
Thaís Fernanda Tenório Sêco*
1. Introdução
Dentro do padrão de inclusões e superação de discriminações promovi-
do pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência, o direito de adotar e de exer-
cer a guarda, a tutela e a curatela, previsto no inc. VI do art. 6º, tem suas
especificidades.
Essas podem ser expressas da seguinte forma: se por um lado, diversas
questões relativas ao exercício de direitos por pessoas com deficiência po-
dem ser inscritas dentro de um binômio de liberdade e (auto)responsabili-
dade, no caso da adoção, da guarda, da tutela e da curatela tem-se uma forte
alteração do sentido da responsabilidade atribuída à pessoa com deficiência.
Não se tratará mais de responsabilidade sobre escolhas que repercutirão em
sua própria vida, mas responsabilidade por atos e escolhas que repercutirão
precipuamente na vida de outra pessoa, a saber, o respectivo adotado, tute-
lado, curatelado ou, enfim, a pessoa sobre quem se exercerá a guarda.
É de se notar que, quanto à curatela, o Estatuto da Pessoa com Deficiên-
cia, enaltecendo o interesse do curatelado e sua participação ativa no pro-
cesso de decisões, eleva o aporte de responsabilidade que recai sobre o cu-
rador, e por menos não podem ficar as demais situações, ficando mais uma
vez a indagação sobre a real capacidade da pessoa com deficiência para exer-
cê-los. Mas essa mesma indagação poderia ser um sinal de incompreensão
do novo paradigma instituído pela nova lei em sua completude.
Em um momento que é de evidente transição entre dois paradigmas, um
a ser superado, outro a ser implementado, cumpre antes de tudo, traçar
breves considerações a esse respeito. Depois disso, será realizada uma breve
* Mestre em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Professora
assistente de Direito Civil do Departamento de Direito da Universidade Federal de
Lavras.
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reflexão acerca dessas situações jurídicas subjetivas em si, do ponto de vista
teórico, e levando em conta seu viés ético e jurídico, com realce especial ao
seu perfil funcional, quer dizer, à importância que podem ter para a vida das
pessoas envolvidas nas relações que instituem. A partir disso, a exposição
seguirá pela construção da resposta a uma pergunta formulada de maneira
um pouco inusitada: como não levar em conta a deficiência? Neste ponto,
procura-se estabelecer o que se deve considerar no momento da constitui-
ção de uma adoção, da guarda, da tutela ou da curatela, de maneira a realizar
a decisão sem recair na discriminação que a nova lei procura evitar. Por
último, serão feitas considerações específicas a respeito de cada uma dessas
situações jurídicas, buscando direcionar a atenção sobre observações espe-
ciais que possam merecer, especialmente do ponto de vista do controle pos-
terior do seu exercício.
Espera-se, assim, construir um sistema de razões capazes de fazer mais
do que afirmar de maneira definitiva que a pessoa com deficiência não deve
ser discriminada, inclusive para fins de adotar e de exercer a guarda, a tutela
e curatela. Pretende-se dizer qual deve ser a mudança da atitude das auto-
ridades estatais para que isso seja possível, de forma a contribuir com a der-
rubada de uma barreira atitudinal (art. 2º, inc. IV, alínea ‘e’ do novo estatu-
to) a efetiva inclusão da pessoa com deficiência.
2. Uma nova lei e um novo paradigma
A metamorfose de Franz Kafka conta a fantástica história de Gregor San-
sa que em um dia aleatório nasce transformado em uma barata. A partir daí,
segue-se a narrativa da progressiva desumanização de Sansa pela repulsa ge-
rada por sua condição inusitada. Embora o próprio Sansa vá perdendo a sua
identidade humana ao logo do romance é notável que a narrativa que se dá
o tempo todo de sua perspectiva é, efetivamente, a narrativa é de um ser
humano aprisionado a um corpo que lhe limita, especialmente do ponto de
vista social, subtraindo-lhe em especial o direito de ser visto como humano
e ficando, como tal, destituído de sua dignidade.1
Trata-se de uma boa metáfora para a compreensão do tipo de mentali-
dade sobre a deficiência que se pretende superar definitivamente a partir da
nova lei.
Ao longo de todo século XX, especialmente em virtude do higienismo,
o corpo doente, deformado, feio, era considerado como literalmente imo-
ral. Bom exemplo disso, são as chamadas ugly laws vigentes em cidades
como Chicago até 1974 pelas quais se proibia a circulação em via pública de
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1 KAFKA, Franz. A metamorfose. São Paulo: Ed. Nova Cultural, 2002.
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