Exceção de contrato não cumprido na pandemia: Legítimo Direito vs Oportunismo

AutorGuilherme Cinti Allevato e Rodrigo Gomes da Mata
Páginas245-286
Exceção de contrato não cumprido na pandemia:
Legítimo Direito vs Oportunismo
Guilherme Cinti Allevato1
Rodrigo Gomes da Mata2
Sumário: Introdução; – 1. Os casos paradigmáticos: mensali-
dades da UNILAGO e suspensões de alugueres nas locações
não residenciais; – 2. Uma análise técnico-jurídica da Exceção
de Contrato não Cumprido; – 3. O oportunismo sob as lentes
do direito civil e da pandemia; – 4. Parâmetros para a Exceptio
na pandemia: o desafio de “separar o joio do trigo”; – 5. Con-
clusão.
Introdução
“É importantíssimo preservar tanto quanto possível os contra-
tos já celebrados, evitando o risco real de que, em um cenário de
crise, os instrumentos jurídicos sejam manipulados de modo opor-
tunista por aqueles que não têm real necessidade de aplicá-los”.3 A
advertência de Anderson Schreiber revela-se da mais alta pertinên-
cia no atual contexto vivido pelo direito contratual, iniciado com a
pandemia do novo coronavírus (COVID-19).
Isso porque, ao mesmo tempo em que criam um ambiente pro-
pício à rediscussão dos contratos (quer visando ajustes de execu-
229
1 Mestrando em Direito Civil e Bacharel em Direito pela Universidade do
Estado do Rio de Janeiro - UERJ. Advogado Associado e Consultor Jurídico.
2 Mestrando em Direito Civil e Bacharel em Direito pela Universidade do
Estado do Rio de Janeiro - UERJ. Pós-graduado no Programa de Direito Imobi-
liário da Pontifícia Universidade Católica (PUC/RJ). Advogado.
3 SCHREIBER, Anderson. Devagar com o andor: coronavírus e contratos.
Acesso em: 05 set. 2020. Disponível em: https://flaviotartuce.jusbra-
sil.com.br/artigos/823664719/devagar-com-o-andor-coronavirus-e-contratos .
ção, alterações ou até rescisão), as repercussões pandêmicas - den-
tre as quais se destacam as restrições a atividades não essenciais, à
livre circulação de pessoas e bens e ao funcionamento de estabele-
cimentos (lockdown), o aumento dos índices de desemprego, o
agravamento da desvalorização monetário-cambiária, o empobreci-
mento geral da população4 e de empresas –, dado seu grau de criti-
cidade, podem ser também porta aberta para aproveitadores obte-
rem vantagens inescrupulosas, eximindo-se de obrigações licita-
mente contraídas, a despeito de terem condições de cumpri-las.
Nessa conjuntura, todo cuidado é pouco para o jurista, que
deve se aprofundar na técnica da ciência jurídica, evitando
banalizações, generalizações e afirmações apriorísticas perigosas no
manuseio das clássicas ferramentas disponíveis em sede de direito
contratual. Como na alegoria de Platão, cabe ao operador do direi-
to conduzir as pessoas, aflitas por não saberem o que será ou se ha-
verá um amanhã, para fora da escuridão da caverna.
Ciente da delicadeza do momento ímpar vivido pela humanida-
de, o presente artigo dedica-se a realizar uma análise técnica da fi-
gura da exceção de contrato não cumprido (exceptio non adimpleti
contractus), com o objetivo de construir parâmetros que, dentro do
contexto excepcional gerado pelas circunstâncias da COVID-19,
possam ser utilizados para distinguir situações em que paralisar
uma prestação mediante adoção do instituto representa direito le-
gitimamente exercido e quando ela adentra o campo dos oportu-
nismos.
Para ilustrar o contraste entre as duas perspectivas e dar visibi-
lidade aos parâmetros, serão examinados dois casos que envolvem
debates acerca da exceptio. O primeiro deles foi extraído de voto
proferido em processo que tramitou no Tribunal de Justiça do Es-
tado de São Paulo (TJSP), por meio do qual um estudante vindi-
cou, em face de instituição de ensino superior, desconto sobre a
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4 Sete em cada dez famílias com renda mensal até dez salários mínimos
estavam endividadas em julho, sendo que quase um terço delas estava inadim-
plente (29,7%, maior patamar em mais de uma década). "O crédito está sendo
necessário para as pessoas conseguirem pagar suas contas", explicou Izis Janote
Ferreira, economista da CNC responsável pelo estudo”. (AGÊNCIA ESTADO.
Medo da pandemia de Covid-19 faz família com renda acima de dez salários
poupar. Notícias Rádio Itatiaia. Publicado: 04 ago. 2020. Disponível:
https://www.itatiaia.com.br/noticia/medo-sobre-a-pandemia-de-covid-19-faz-
familia-com-renda-acima-de-dez-salarios-poupar1).
mensalidade cobrada, em razão de aulas práticas presenciais terem
sido suspensas com o advento da pandemia. Já o segundo é um caso
simulado, a partir de controvérsia (muito comum nesta pandemia)
entre o legítimo cabimento da exceção e os deveres sinalagmáticos
de garantir a utilidade do imóvel e pagar os alugueres.
Concluída a exposição dos campos fáticos projetados para ava-
liação do instituto, no capítulo seguinte serão abordados os ele-
mentos fundantes da exceção de contrato não cumprido, quais se-
jam sua definição, natureza dilatória, modalidades e pressupostos.
Todos serão abordados sob prisma analítico, de modo que o leitor
possa compreender a estrutura da exceptio e passe a dispor de que-
sitos para identificar seu cabimento, por meio de leitura objetiva
de casos relacionados ao contexto da COVID-19, sem cair em ar-
madilhas.
Na sequência, passar-se-á a dispor sobre o oportunismo, porém
transplantando-o do espaço da semântica vulgar para a linguagem
científica e técnica do direito dos contratos. Nesse sentido, o artigo
se debruçará no estudo da boa-fé objetiva e suas figuras parcelares,
abuso de direito, condições potestativas e o “locupletamento bila-
teral” (que compreende aproveitamentos indevidos de credor e
devedor). O propósito deste ponto é brindar os operadores do di-
reito com visão jurídica objetiva acerca dos comportamentos opor-
tunistas, afastando-os da tentação de, movidos pelo afã de “apagar
incêndios” na crise, utilizar o termo em seu significado gramático-
literal, que é vago, geral e, por conseguinte, pouco efetivo.
Finalmente, vistos os dois casos do capítulo inicial, bem como
o contraste entre as concepções técnicas da exceção de contrato
não cumprido e do oportunismo sob ótica jurídica, traremos a lume
quatro parâmetros para auxiliar o jurista a discernir, no cenário da
COVID-19, legítimo exercício da exceptio e alegações oportunis-
tas. A indicação de cada baliza virá acompanhada de fundamenta-
ção jurídica e comentários que as associe com as duas situações ex-
postas na abertura deste artigo.
Infelizmente, a história do homem (e, em especial recorte, a do
brasileiro) ensina que, nos momentos das mais graves crises, os
oportunistas ficam à solta e colocam seus planos em prática.5 Con-
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5 A título de exemplo, merece registro a histórica campanha sanitária pro-
movida por Oswaldo Cruz, no começo de 1904, para combater a peste bubônica
na cidade do Rio de Janeiro, marcada pela criação dos “ratoeiros”, um grupo de

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