Inadimplemento de prestação alimentícia em tempos de pandemia: a (in)eficácia da prisão civil em regime domiciliar

AutorAndressa Souza de Albuquerque
Páginas771-803
Inadimplemento de prestação alimentícia em
tempos de pandemia: A (in)eficácia da prisão
civil em regime domiciliar
Andressa Souza de Albuquerque1
Sumário: Notas Introdutórias; – 1. Breve histórico acerca da
prisão civil e previsão no ordenamento jurídico interno; – 2.
Viabilidade de decretação da prisão de natureza cível; – 3. No-
vos rearranjos em razão da pandemia: substituição ao encarce-
ramento institucional; – 4. Aplicação, coercitividade e eficácia
do instituto: o posicionamento jurisprudencial a partir da ino-
vação legislativa; - 6. Conclusão.
Notas Introdutórias
A possibilidade de cerceamento da liberdade de indivíduo que
não cumpre a obrigação alimentar é a única exceção, atualmente,
no ordenamento jurídico brasileiro, ao se tratar de prio civil.
Diante da violação de dever tão importante, surge para o alimenta-
do a opção de impelir o devedor a adimplir o débito voluntário e
inescusável mediante rito específico, consistente na constrição de
sua liberdade.
É cediço que a viabilidade da prisão civil por qualquer dívida,
paulatinamente, foi sendo afastada, impossibilitando, no presente
momento, a imposição de tal medida, inclusive, ao depositário in-
755
1 Mestranda em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(PPGD/UERJ), na linha de pesquisa "Direito Civil". Graduada em Direito pela
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro - Instituto Multidisciplinar e
membro do grupo de pesquisa DIALOGOS (UFRRJ/CNPQ), na linha "Direito
Civil além do Judiciário" (DiCAJ). Assessora Jurídica no Ministério Público do
Estado do Rio de Janeiro.
fiel, a despeito de previsão constitucional. A discussão sobre a ma-
nutenção desse instrumento processual gravoso e excepcional à
disposição do credor alimentício não é recente e, embora haja po-
sicionamentos contrários, tem prevalecido, em doutrina e jurispru-
dência, o entendimento de que a obrigação alimentar, por envolver
direito fundamental à vida e à saúde dignas do credor, é merecedo-
ra de tutela especial, sendo plenamente admissível a imposição de
decreto prisional em caso de inadimplemento inescusável.
Com efeito, o Estado de Emergência de Saúde Pública de Im-
portância Internacional, declarado pela Organização Mundial da
Saúde (OMS), instaurado a partir do surto do novo Coronavírus,
acarretou modificações estruturais na sociedade, demandando
uma atuação enérgica dos Poderes da República. Esta nova realida-
de mundial ocasionou a publicação de diversas diretrizes e legisla-
ções para nortear a manutenção de atividades e serviços essenciais,
e rearranjar as limitações necessariamente impostas para evitar o
contágio e a disseminação do vírus.
Por isso, em 10 de junho de 2020, foi promulgada a Lei n.
14.010/2020, que dispunha sobre o Regime Jurídico Emergencial
e Transitório das relações jurídicas de Direito Privado (RJET) no
período da pandemia do coronavírus (Covid-19). O legislador,
diante das determinações e/ou recomendações realizadas pelas au-
toridades competentes, preocupando-se com os impactos pandê-
micos nas relações familiares e sucessórias, disciplinou que, até o
dia 30 de outubro de 2020, prazo de vigência determinada da cita-
da norma, eventual decretação da prisão civil, do devedor de ali-
mentos, dar-se-ia, exclusivamente, sob a modalidade domiciliar.
O impedimento de constrição institucional, na esteira da Reco-
mendação n. 62/2020 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e
precedentes do Superior Tribunal de Justiça (STJ), é inteiramente
compreensível, haja vista o Estado de Coisas Inconstitucional das
unidades prisionais e o esforço governamental em diminuir a proli-
feração do vírus SARS-CoV-2, responsável pela Covid-19. Em
contrapartida, em estágio social em que todas as pessoas estavam –
e, em certa medida, ainda estão – reclusas em suas residências,
como um dos mecanismos impostos pelas autoridades públicas,
urge o questionamento quanto à eficácia da fixação de regime do-
miciliar como instrumento coercitivo idôneo.
Assim, por tratar-se de evento recente, a discussão jurídico-
doutrinária sobre o tema ainda é imatura, justificando-se, portanto,
756
o presente estudo, em especial, para explorar a efetividade da fixa-
ção de regime domiciliar como instrumento processual hábil a coa-
gir o devedor de alimentos a adimplir sua obrigação no período
pandêmico. Sob tal pressuposto, objetiva-se sistematizar, através
de pesquisa documental, as limitações impostas pela legislação fe-
deral e Recomendações, a fim de confrontá-las com as medidas
efetivamente adotadas pelos magistrados, identificadas em deci
sões judiciais do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janei-
ro, através de uma análise jurisprudencial crítica e doutrinária.
1. Breve histórico acerca da prisão civil e previsão no
ordenamento jurídico interno
Restando medida isolada no contexto brasileiro atual, a possibi-
lidade de cerceamento da liberdade do indivíduo, por inadimple-
mento de débito alimentar, constitui, na prática processual, um
dos mecanismos mais úteis, quiçá o mais eficaz, de garantir a satis-
fação da aludida obrigação. Não se pretende discorrer desde o Có-
digo de Hamurábi2, todavia é interessante traçar, ainda que super-
ficialmente, um panorama histórico sobre a prisão civil na socieda-
de e apurar os seus vestígios contemporâneos.
Diversamente do que se verifica atualmente, no berço do direi-
to romano arcaico, era permitido que, diante do descumprimento
de uma obrigação, o credor se apoderasse, não dos bens, mas da
própria pessoa do devedor, de modo a poder dele dispor, como es-
cravo, a fim de alcançar a sua máxima satisfação. Superveniente-
mente, sobrevieram a Lei das XII Tábuas e a Lex Poetelia Papiria,
as quais mitigaram a atuação do credor, possibilitando-o a reduzir
o devedor a uma condição de “quase-servo” (addictus)3.
Todavia, esse cenário não mais se apresenta plausível, pois a no-
ção de patrimonialidade que se construiu, fruto de uma visão am-
757
2 Alusão a crítica de Luciano Oliveira manifestada em seu artigo: OLIVEI-
RA, Luciano. Não fale do código de Hamurábi! A pesquisa sociojurídica na
pós-graduação em Direito. In: OLIVEIRA, Luciano. Sua Excelência o Comissá-
rio e outros ensaios de Sociologia jurídica. Rio de Janeiro: Letra Legal, p. 137-
167, 2004. Disponível em: https://bit.ly/3haWoKQ. Acesso em: 03 fev. 2021.
3 KONDER, Carlos Nelson; RENTERIA, Pablo. A funcionalização das rela-
ções obrigacionais: interesse do credor e patrimonialidade da prestação. Civilis-
tica.com, Rio de Janeiro, a. 1. n. 2, p. 1-24, jul-dez. 2012. Disponível em:
http://civilistica.com/a-funcionalizacao/. Acesso em: 25 ago. 2020, p. 13.

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT