Memória, resistência e agência no Rio de Janeiro: uma incursão sobre o Samba da Mangueira de 2019

AutorBethânia Assy e Gabriela Azevedo
Páginas99-114
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MEMÓRIA, RESISTÊNCIA E AGÊNCIA NO RIO DE
JANEIRO: UMA INCURSÃO SOBRE O SAMBA DA
MANGUEIRA DE 2019
Bethânia Assy1
Gabriela Azevedo2
Resumo: O artigo apresenta uma incursão sobre a memória como
ferramenta de construção política. No Rio de Janeiro do século XXI,
movimentos sociais em protesto apresentaram demandas colocando em
xeque a efetividade do artigo 5º da Constituição Federal de 1988: se
igualdade formal independente de etnia/racialização, de crença religiosa,
de sexo/identificação de gênero, por que postos de emprego e de tomada
de decisão, serviços de saúde e educação, além de habitação, ou seja,
acesso a bens e serviços essenciais, estão muito mais disponíveis para
homens brancos cis heterossexuais? Dado que a história brasileira é o
encontro violento e colonizador de diferentes grupos étnico-raciais, na
pós colonização, se quadros e livros continuam a emoldurar heróis tão
diferentes das maiorias, formas de resistência são produzidas
continuamente. Argumentamos neste texto que o samba-catarse da
Mangueira de 2019 desfilou em uma rua previamente pavimentada por
disputas de memória, pela tensão ininterrupta da resistência com o legado
colonizador. Segundo Benjamin (2009), a memória produz possibilidade
1 Mestrado em Filosofia Política e Social pela Universidad e Federal de Pernambuco,
Mestrado em Filosofia pela New School for Social Research, NY-USA, Doutorado em
Filosofia pela New School for Social Research, NY-USA. Pós-Doutorado na Birkbeck
Law School, London University. Coordenadora Adjunta da Cátedra UNESCO (PUC-
RIO): Direitos Humanos: Violência, Governo e Governança. Professora do Departamento
de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e Professora Associada
do Departamento de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
2 Doutora em Direito (UERJ, com período de sanduíche na Universidade do Porto),
Mestre em Direito (UERJ) e Mestre em Direito (PUC-Rio), bacharel e licenciada em
História (UNIRIO) e em Direito (UFRJ), pesquisadora LEICC/ UERJ, colaboradora da
Linha temática: Histórias Conectadas: Construção do Estado, Movimentos Sociais e
Economia Política (IHC/UNL), professora e coordenadora adjunta do Curso de Extensão
Universitária “Diálogo de Saberes na Produção da Justiça e dos Direitos” (UFRJ), e
professora do CEPED-UERJ.
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política de ação e interrupção da injustiça da aparente linearidade. Na
parte final, introduzimos reflexões sobre os sujeitos da injustiça no Brasil
para sugerir uma complementação provocativa da memória a partir da
experiência corporificada dos sujeitos que a disputam na concretude.
Palavras-chave: Memória; agenciamento político; resistência e
empoderamento; racismo estrutural; revisionismo critico.
Introdução
Tem sangue retinto pisado
Atrás do herói emoldurado
Mulheres, tamoios, mulatos
Eu quero um país que não está no retrato
(DOMENICO et al, 2019)
Quando a Estação Primeira de Mangueira, vizinha da UERJ,
trouxe para a Avenida Marquês de Sapucaí em 2019 o enredo “História
para ninar gente grande”, 3um samba forte e um carnaval que não sai da
memória se colocaram diante do público. Embora a fotografia, os carros
alegóricos e alas façam parte dos motivos que levaram a Escola a ganhar
o Grupo Especial da Liga de Escolas de Samba carioca daquele ano, a
estética e a técnica do desfile não são o foco de análise deste texto, mas
sim o seu fundamento e os seus desdobramentos políticos.
O questionamento da relação tensa entre história e memória no
Brasil pôde ser feito de forma contundente pela Mangueira em 2019
porque havia antecedentes na disputa da sociedade sobre representação,
protagonismo, agência e empoderamento. Esses elementos foram
ressignificados a partir de uma compreensão compartilhada da
3 Samba: “Brasil, meu nego; Deixa eu te contar; A história que a história não conta; O
avesso do mesmo lugar; Na luta é que a gente se encontra. Brasil, meu dengo; A
mangueira chegou; Com versos que o livro apagou; Desde 1500; Tem mais invasão do
que descobrimento; Tem sangue retinto pisado; Atrás do herói emoldurado; Mulheres,
tamoios, mulatos; Eu quero um país que não tá no retrato. Brasil, o teu nome é Dandara; e
a Tua cara é de cariri; Não veio do céu; Nem das mãos de Isabel; A liberdade é um dragão
no mar de Aracati. Salve os caboclos de julho; Quem foi de aço nos anos de chumbo;
Brasil, chegou a vez; De ouvir as Marias, Mahins, Marielles, malês. Mangueira, tira a
poeira dos porões; Ô, ab re alas pros teus heróis de barracões; Dos Brasil que se faz um
país de Lecis, jamelões; São verde- e- rosa as multidões”. (DOMENICO et al, 2019).

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