A ordem econômica constitucional resiste à (e na) crise? O regime jurídico emergencial e a política econômica concorrencial brasileira

AutorJosé Augusto Medeiros e João Otávio Bacchi Gutinieki
Ocupação do AutorDoutorando em Direito Econômico pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (FD-USP). Pesquisador visitante da Sciences Po Law School/Mestrando em Direito Econômico pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (FD-USP). Advogado
Páginas176-201
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Transformações do Direito Administrativo:
Direito Público e regulação em tempos de pandemia
A ordem econômica constitucional resiste à
(e na) crise? O regime jurídico emergencial e
a política econômica concorrencial brasileira
José Augusto Medeiros302
João Otávio Bacchi Gutinieki303
Resumo
Este trabalho avalia a política concorrencial brasileira, tomando
como foco de análise os desafios impostos pela pandemia do co-
ronavírus. De um lado, parte-se da premissa de que, no âmbito das
economias desenvolvidas, a crise da Covid-19 acelerou um processo
que já vinha de décadas, cuja principal característica é a utilização da
política concorrencial como instrumento de proteção dos mercados
internos. De outro lado, sustenta-se que o Brasil deixou de acompa-
nhar tal movimento. Apesar de observar parâmetros internacionais
de regulação da concorrência, a política concorrencial brasileira
absteve-se de harmonizar com outras políticas econômicas. Nes-
sa linha, afirma-se que a economia política concorrencial brasileira
corresponderia a uma economia política liberalizante e reducionis-
ta de outras perspectivas. A primeira parte do texto é dedicada à
apreciação do quadro imposto pelo Regime Jurídico Emergencial
e Transitório (RJET ou Lei no 14.010/2020). Na segunda parte, ten-
ciona-se oferecer uma reflexão crítica a respeito da separação, no
campo concorrencial, entre função político-social e estratégia ma-
croeconômica. Ao final, para comprovar a hipótese levantada, o
trabalho lança mão da avaliação de casos recentes na área.
Palavras-chave: RJET. Antitruste. Política concorrencial. Pandemia.
1. Introdução
A regulação jurídica do mercado pressupõe ao menos duas or-
dens de fatores: (i) um sistema econômico de produção, com suas
302 Doutorando em Direito Econômico pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo
(FD-USP). Pesquisador visitante da Sciences Po Law School.
303 Mestrando em Direito Econômico pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo
(FD-USP). Advogado.
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A ordem econômica constitucional resiste à (e na) crise?
O regime jurídico emergencial e a política econômica concorrencial brasileira
respectivas particularidades, e (ii) um corpo jurídico de normas
que, além de permitir a realização desse sistema, empresta-lhe sen-
tido, induzindo-o a certas finalidades. Essa afirmação revela que o
desenho jurídico dos mercados corresponde à reflexão direta do
momento histórico-econômico vivido por determinada socieda
-
de. Com o controle da concorrência, não é diferente. Os debates
na área variam muito de acordo com os autores, o ordenamento
jurídico e, principalmente, o momento histórico,
304
colocando em
perspectiva realidade econômica, poder econômico e planejamen-
to, respectivamente. Com efeito, o espaço dialógico estabelecido
entre a economia, o mercado e a indução do poder econômico (pla-
nejamento, portanto) fica mais evidente em momentos de crise.305
Recentemente, tem-se um exemplo nesse sentido. O choque
promovido pela pandemia da Covid-19 acelerou um processo de
instrumentalização do poder econômico das economias mundiais
via refuncionalização concorrencial.
306
A deterioração real e imedia-
ta do processo econômico interno dessas economias fez com que
elas rapidamente buscassem soluções jurídicas de proteção de seu
mercado nacional, abandonando, inclusive, as retóricas de eficiên-
cia econômica e de concorrência perfeita. Esse movimento sugere
que as economias desenvolvidas seguem à risca uma política eco-
nômica concorrencial concatenada com suas vicissitudes sociais e
industriais, bem como voltada à proteção de seus mercados internos.
304 Cf. BERCOVICI, Gilberto. Direito econômico aplicado: estudos e pareceres. São Paulo: Contra-
corrente, 2016, p. 400; HOVENKAMP, Herbert. Antitrust Policy After Chicago. Michigan Law
Review, v. 84, 1985, p. 213-216; e, do mesmo autor, Federal Antitrust Policy: The Law of Com-
petition and its Practice. 3. ed. St. Paul: Thonson/West, 2005, p. 60-64.
305 A respeito da alteração das estruturas jurídicas diante de momentos de crise, ver, por todos:
BROADBERRY, Stephen; HARRISON, Mark (orgs.). The Economics of the Second World War:
Seventy-five Years On. London: Centre for Economic Policy Research, 2020; COMPARATO,
Fabio Konder. O indispensável direito econômico. Revista dos Tribunais, São Paulo, ano 54, v.
353, março de 1978; BERCOVICI, Gilberto. “O ainda indispensável direito econômico”. In: BE-
NEVIDES, Maria Victoria; BERCOVICI, Gilberto; MELO, Claudineu (orgs.). Direitos humanos,
democracia e República: homenagem a Fábio Konder Comparato. São Paulo: Quartier Latin,
2009, p. 503-519. Para este último autor, inclusive, o Direito Econômico seria, por excelência,
uma disciplina da crise. Especialmente sobre a história brasileira, conferir: IANNI, Octavio. Es-
tado e planejamento econômico no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991, p. 30;
LINHARES, Maria Yedda Leite; SILVA, Francisco C. T. da. História política do abastecimento
(1918-1974). Brasília: BINAGRI, 1979; e VENÂNCIO FILHO, Alberto. A intervenção do Estado
no domínio econômico: o direito público econômico no Brasil. Edição Fac-similar de 1968.
Rio de Janeiro: Renovar, 1998.
306 Cf. ALEMANHA. “Monopolkommission”. Biennial Report XXIII of the Monopolies Commission
pursuant to Section 44 (1) sentence 1 of the Act Against Restraints on Competition, 2018.

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